terça-feira, 23 de março de 2010

Esse dia chegaria

O dia fatídico está chegando.
Nunca gostei de aniversário e este ano não podia ser diferente, ainda mais batendo os 40.
Quando eu era moleque achava 2010 um ano tão distante quanto a galáxia mais próxima.

Tive sorte quanto à carga genética, e ela é implacável.

Sem rugas, sem barriga, sem calvície, sem doenças degenerativas e ainda por cima, com inteligência e porte físico acima da média.
Mas é notório o que o tempo nos tira.

Claro que a segurança, bagagem cultural e certa maturidade só o tempo nos traz, mas não sei até quando as perdas compensarão os ganhos.

Envelhecer é perder nosso pífio controle sobre o que supostamente sempre achávamos controlável: o próprio corpo. E o pior, envelhecer é perder quem se gosta. Acho injusto. Deveríamos morrer todos juntos.

Além das perdas pelo término da vida, existem as perdas para a ausência de vida. Eu sempre enfatizo esta última e deixo claro que elas não são iguais.

Esta é a perda para corporações, para os modelos de vida que foram comprados e/ou assumidos como verdadeiros.
Quem nunca encontrou um velho amigo e não se perguntou quem era aquele sujeito que estava ali na sua frente?

O velho amigo se perdeu em algum lugar e a 'carcaça' vazia ainda perambula por aí. Uma espécie de clone vazio e autômato que cumpre apenas as funções de manter a prole e galgar algumas posições num organograma.

Digo que esta perda é mais dolorosa, pois é como um ente querido que desapareceu. O luto é muito longo.
Como escreve Roberto Shinyashiki: “Viver de acordo com as expectativas dos outros é suicídio.”

Uma monstruosa estrela, ao término de seu combustível nuclear, colapsa no próprio peso. Sendo bem sintético, elas se acabam gerando átomos maiores, o combustível para outras criações no universo.

O grande Carl Sagan já dizia que a astronomia é uma lição de humildade.
Nós, de forma bem mais modesta, só geramos comida de verme.

A morte foi banida de nossa sociedade. Ninguém pode morrer, e o pior, ninguém pode ter uma boa morte.

A consequência disso é que não temos vida.
A vida passou a ser uma negação da morte e nada mais.
Em nome de algum Deus qualquer, de alguma entidade qualquer ou simplesmente acumulando coisas de maneira faraônica, com o diferencial que o nosso custo, ao contrário dos faraós, são quase todos os anos de vida produtiva.

E o nosso tempo é curtíssimo!

Mais uma vez a astronomia é meu referencial.
No universo, somos uma partícula ridícula, de existência instantânea e sem nenhum poder de influência.

Olho os gatos, seres que sempre achei admiráveis.

Todos os felinos os são, mas o nosso gato doméstico é o ser a ser observado.
Fora todas as suas qualidades, inatas a um predador, como silêncio, limpeza, destreza, agilidade e resistência, ainda sabem morrer.

Só quem tem um gato sabe a serenidade com que eles enfrentam o fim. "Enfrentam" já é um termo humanizado, pois eles não enfrentam, eles aceitam.

A maioria para de comer e vai se deitar em locais molhados e frios, aguardando o fim do "jogo".

Em seu maior best seller, No Ar Rarefeito, John Krakauer escreve que não existe morte natural e, principalmente, que morrer de velhice não é natural.

Quem já ouviu falar num leão ou mesmo num salmão que morre de velhice?

Enfim, isso não é uma nota suicida, mas acho que para gostar de viver é preciso ter a morte como vizinha e ter a sabedoria de saber quando o jogo acaba.


Olho no espelho e vejo um molecão numa 'carcaça' que, apesar de ainda grande, anda meio enferrujada. São dois os fatos principais: não mudamos nunca e a minha 'carcaça' faz parte do que eu sou de maneira igualmente importante aos sentimentos e à sabedoria; não admito perder nenhum desses componentes, caso contrário, não serei mais eu.


Nessas épocas lembro sempre da biografia do meu ídolo do blues, Mr Riley B. King, a quem tive o indescritível prazer de ver ao vivo e a menos de 2 metros:


"B. e eu nos sentamos à mesa da cozinha. Estamos famintos; ele esquenta feijão e pão de milho, passa a manteiga por cima, despeja leite e mistura tudo. É muito bom.
BB King: Comi muito isso quando era menino depois que minha mãe morreu. Agora, quando volto de uma viagem, venho pra cá e finjo que voltei atrás e estou preparando isso pra mim. Dá uma sensação de conforto. Sei que mudei muito, mas também sei que não mudei nada. Pensando dessa forma, minha vida começa a ter algum sentido."

Dispenso o Fasano, vinhos caros e grandes viagens. Minha satisfação é plena quando chego na casa da minha mãe e ela diz que fez "apenas" feijão.

2 comentários:

  1. A carcaça está quase em perfeito estado, a inteligência se aprimorou, o (mal) humor é o mesmo e o afeto, bem esse componente... quem não tem sempre algo a aprender? Por isso você continua tão interessante e enigmático.
    Te amo demais, parabéns!!!

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  2. O Coisa não tem bom ou mau humor, apenas não tem humor nenhum... :o)

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