segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Isso ainda é tabu

Nesta data de significado "especial", quando as pessoas resolvem se lembrar de todos mandando mensagens prontas e resolvem ser "generosas" comprando amor para (dos) os outros, esse livro vem bem a calhar.

Para Latouche o decrescimento é uma utopia concreta e, assim como para Bauman, Zizek e outros, não temos mais escolha a não ser mudar de caminho e portanto nos livrarmos do dogma do mercado.
Decrescimento ou barbárie.



Pequeno tratado do descrescimento sereno

Da um texto português da "A Pipeira":

Ordem e progresso?

O desenvolvimento, conceito etnocêntrico e etnocidário, se impôs pela sedução, combinada com a violência da colonização e do imperialismo, constituindo uma verdadeira "violação do imaginário".
O "desenvolvimento sustentável", invocado de forma encantatória em todos os programas políticos, "tem como única função", precisa Hervé Kempf, "conservar os lucros e evitar uma mudança de hábitos quase sem alterar os rumos". Falar de um "outro "desenvolvimento", como se fala de um “outro crescimento", traduz ou uma grande ingenuidade, ou uma grande duplicidade.

O crescimento, hoje, só é um negócio rentável se seu peso recair sobre a natureza, as gerações futuras, a saúde dos consumidores, as condições de trabalho dos assalariados e, mais ainda, sobre os países do Sul. Por isso uma ruptura é necessária.

De onde surgiu?

Desde o fim dos anos 1960 o conceito foi trabalhado por André Clorz, François Partant, Jacques Ellul, Bernard Charbonneau, mas sobretudo por Cornelius Castoriadis e Ivan lllich. O fracasso do desenvolvimento no Sul e a perda das referências no Norte levaram esses pensadores a questionar a sociedade de consumo e suas bases imaginárias: o progresso, a ciência e a técnica. A tornada de consciência da crise do meio ambiente trouxe uma nova dimensão: não só a sociedade de crescimento não é desejável, como ela não é sustentável!

Como se consolidou?

Três ingredientes são necessários para que a sociedade de consumo possa prosseguir na sua ronda diabólica: a publicidade, que cria o desejo de consumir; o crédito, que fornece os meios; e a obsolescência acelerada e programada dos produtos, que renova a necessidade deles. Essas três molas propulsoras da sociedade de crescimento são verdadeiras "incitações-ao-crime”.

A publicidade nos faz desejar o que não temos e desprezar aquilo de que já desfrutamos. Ela cria e
recria a insatisfação e a tensão do desejo frustrado. O sistema publicitário "apropria-se da rua, invade o espaço coletivo - desfigurando tudo o que tem vocação pública: as estradas, as cidades, os meios de transporte, as estações de trem, os estádios, as praias, as festas".

São programas televisivos entrecortados pelas inserções publicitárias, crianças manipuladas e perturbadas (pois as mais frágeis são as mais visadas), florestas destruídas (40 kg de papel por ano nas nossas caixas de correio).

Por outro lado, o uso do dinheiro e do crédito, necessário para que aqueles cujos rendimentos não são
suficientes possam consumir e para que os empresário possam investir sem dispor do capital necessário, é um potente "ditador" de crescimento no Norte, mas também, de modo mais destrutivo e mais trágico, no Sul.

Já a obsolescência programada, é na sociedade de crescimento a arma absoluta do consumismo. Em
prazos cada vez mais curtos, os aparelhos e equipamentos, das lâmpadas elétricas aos pares de óculos, entram em pane devido à falha intencional de um elemento. Impossível encontrar uma peça de reposição ou alguém que conserte. Se conseguíssemos pôr a mão na ave rara, custaria mais caro consertá-la do que comprar uma nova.

Um dado que falta nos livros e trâmites da economia: a ecologia. A nossa pegada ecológica insustentável.
Nosso crescimento econômico excessivo choca-se com os limites da finitude da biosfera. A capacidade de regeneração da Terra já não consegue acompanhar a demanda: o homem transforma os recursos em resíduos mais rápido do que a natureza consegue transformar esses resíduos em novos recursos. A humanidade já consome quase 30% além da capacidade de regeneração da biosfera. Se todos vivessem como os franceses, seriam precisos três planetas contra seis para acompanhar nossos amigos estadunidenses.

A entrada de nosso sistema em uma órbita errônea remonta ao século XVIII, mas a dívida ecológica é
recente. Em termos mundiais, ela passou de 70% para 120% do planeta entre 1960 e 1999. Além disso, para manter a biodiversidade, é essencial poupar uma parte da capacidade produtiva da biosfera para garantir a sobrevivência das outras espécies, particularmente a das espécies selvagens. 
Essas reservas de biosfera devem ser equitativamente distribuídas entre os diferentes domínios biogeográficos e os principais biomas. Com o patamar mínimo dessa parte a ser preservada é avaliado em 10% do espaço bioprodutivo, seria sensato decretar desde já uma moratória para
reservar o que ainda está disponível para as espécies animais e vegetais em questão.

Não adianta querer reduzir a população!

Não é tanto saber se somos ou não capazes de administrar o superpovoamento, mas se sabemos dividir os recursos com honestidade e equidade. Esse é o desafio do decrescimento.
O excesso de consumo de carne por parte dos ricos, fonte de vários problemas sanitários e ecológicos, exige dedicar 33% das terras aráveis do planeta (além dos 30% das superfícies emersas que constituem pastagens naturais) à cultura de forragem. Uma diminuição relativa da criação de animais com melhora do tratamento do rebanho possibilitaria alimentar uma população mais numerosa e de uma maneira mais sadia e, ao mesmo tempo, diminuir a emissão de dióxido de carbono.

A reinvenção do político

Todos os regimes modernos foram produtivistas: repúblicas, ditaduras, sistemas totalitários, fossem seus governos de direita ou de esquerda, liberais, socialistas, populistas, social-liberais, social-democratas, centristas, radicais, comunistas. Todos propuseram o crescimento econômico como inquestionável a seu sistema. A mudança indispensável de rumo não é daquelas que uma simples eleição poderia resolver instituindo um novo governo ou votando a favor de outra maioria. O que é necessário é bem mais radical: uma revolução cultural, nem mais nem menos, que deveria culminar num a refundação do político.

Tentar esboçar os contornos do que poderia ser um a sociedade de não crescimento é um pré-requisito de qualquer programa de ação política que respeite as exigências ecológicas atuais. O decrescimento é portanto um projeto político, um projeto de construção, no Norte e no Sul, de sociedades conviviais
autônomas e econômicas, sem por isso ser um programa no sentido eleitoral do termo: ele não se inscreve no espaço da política politiqueira, mas visa devolver toda a sua dignidade ao político.

A revolução exigida para a construção de uma sociedade autônoma de decrescimento pode ser
representada pela articulação sistemática e ambiciosa de oito mudanças interdependentes que se reforçam mutuamente. Podemos sintetizar o conjunto delas num "círculo virtuoso” de oito "erres": reavaliar (velhos valores "burgueses"), reconceituar (riqueza e de pobreza ou escassez e abundância, enfrentar o desafio do desaparecimento dos recursos naturais.), reestruturar (adaptar o aparelho produtivo e as relações sociais em função desses novos valores), redistribuir (não se tratará tanto de dar mais, e sim de extrair menos. A pegada ecológica é um bom instrumento para determinar os "direitos de saque" de cada um), relocalizar (produzir localmente, no que for essencial, os produtos destinados à satisfação das necessidades da população), reduzir (diminuir o impacto sobre a biosfera de nossos modos de produzir e de consumir, limitar o consumo excessivo e o incrível desperdício de nossos hábitos), reutilizar-reciclar (reduzir o desperdício desenfreado, combater a obsolescência programada dos equipamentos e reciclar os resíduos não reutilizáveis diretamente).

Esses oito objetivos interdependentes são capazes de desencadear um processo de decrescimento sereno, convivial e sustentável.

Três Rs têm um papel "estratégico’’: a reavaliação, porque ela preside a toda mudança, a redução, porque ela condensa todos os imperativos práticos do decrescimento, e a relocalização, por que ela concerne à vida cotidiana e ao emprego de milhões de pessoas.

Outras reduções necessárias

- O turismo de massa, o inimigo público ambiental número 1. Segundo a Federação Artesãos do Mundo, num pacote de viagens de 1000 euros, menos de 200 euros em média ficam com o país hóspede. Viajamos às expensas do planeta. Temos de reaprender a sabedoria dos tempos passados: desfrutar da lentidão, apreciar nosso território.

- Reduzir o tempo de trabalho. Não construiremos uma sociedade serena de decrescimento sem recuperar as dimensões recalcadas da vida: o prazer de cumprir seu dever de cidadão, o prazer das atividades de fabricação livre, artística ou artesanal, a sensação do tempo recuperado para a brincadeira, a contemplação, a meditação, a conversação, ou até, simplesmente, para a alegria de estar vivo.

Inventar a democracia ecológica local

Recuperar a autonomia econômica local. A reconquista ou a reinvenção dos commons (bens comunais, bens comuns, espaço comunitário) e a autoorganização de "bioregiões" constituem uma ilustração possível dessa postura. Um novo tramado orgânico do local (possibilitar que as pessoas estejam mais juntas, com o estiveram até os anos 1960, graças, entre outras coisas, a escolas rurais e empresas ’familiares’, as quitandas de esquina e cinemas de bairro, em vez de passarem a vida viajando no circuito entre complexos escolares, zonas industriais e hipermercados da periferia).

O programa da relocalização implica a busca da autossuficiência alimentar em primeiro lugar, depois
econômica e financeira. Conviria manter e desenvolver a atividade básica em cada região: agricultura e horticultura, de preferência orgânica, respeitando as estações. Considerar inventar "moedas biorregionais”.

Norte x Sul

Primeiro, é claro que o decrescimento no Norte é uma condição para o florescimento de qualquer forma de alternativa no Sul. Enquanto a Etiópia e a Somália estiverem condenadas, no auge da fome, a exportar alimentos para nossos animais domésticos, enquanto engordarm os nosso gado de corte com farelo de soja obtidas pelas queimadas da Floresta Amazônica, asfixiaremos qualquer tentativa de verdadeira autonomia no Sul.

Outros "erres", alternativos e complementares ao Sul como Romper, Reatar, Resgatar, Reintroduzir,
Recuperar - etc.

Reatar com o fio de uma história interrompida pela colonização, o desenvolvimento e a globalização.
Resgatar e se reapropriar de um a identidade cultural própria. Reintroduzir os produtos específicos esquecidos ou abandonados e os valores "antieconômicos" ligados ao passado desses países. Recuperar as técnicas e práticas tradicionais.

A auto-organização por meio do "jeitinho" dos excluídos da modernidade econômica é um exemplo de construção de sociedade autônoma econômica sustentável, em condições infinitamente mais precárias do que seriam as sociedades de decrescimento no Norte, sem nada ficar a dever, ou quase nada, às elites intelectuais e políticas do continente. Essa capacidade não só de sobreviver, mas também de construir uma vida completa à margem da sociedade mundial de mercado, se estabelece sobre três tipos de bricolagem: imaginária, com a proliferação dos cultos sincréticos e das seitas (inclusive nos países muçulmanos, com as confrarias e suas dissidências); tecnoeconômica, com a recuperação engenhosa, industriosa e empreendedora (em oposição à racionalidade econômica ocidental: engenheira, industrial e empresarial); e sobretudo social, com a invenção de um laço "neoclânico” (pelas participações cruzadas numa grande quantidade de associações).

O após-desenvolvimento, necessariamente plural por outro lado, significa a procura de modos de desenvolvimento coletivo em que não seja privilegiado um bem-estar material destruidor do meio ambiente e do laço social. O objetivo da "boa vida" pode se expressar de muitas formas, conforme os contextos. Em outras palavras, trata-se de reconstruir/resgatar novas culturas.

R-evolução e re-encantamento

Trata-se por certo de uma revolução. "Revolução não significa nem guerra civil nem derramamento de sangue". "A revolução", prossegue Castoriadis, "é uma mudança de certas instituições centrais da sociedade pela atividade da própria sociedade: a autotransformação explícita da sociedade, condensada num breve espaço de tempo. A revolução significa a entrada de parte essencial da comunidade numa fase de atividade política, isto é, instituinte. O imaginário social se põe a trabalhar e se dedica explicitamente à transformação das instituições existentes."

É possível pensar a transição mediante um programa quase eleitoral, que em certos aspectos extrai as
consequências "de bom senso" do diagnóstico efetuado acima. Por exemplo:

1) Resgatar uma pegada ecológica igual ou inferior a um planeta, ou seja, mantidas constantes as outras coisas, uma produção material equivalente à dos anos 1960-1970. Com o seria possível reduzir nossa pegada ecológica em cerca de 75% sem voltar à idade da pedra? Simplesmente desinchando maciçamente os "consumos intermediários”, entendidos em sentido amplo (transportes, energia, embalagens, publicidade), sem afetar o consumo final. O retomo ao local e a caça ao desperdício contribuiriam para isso.

2) Integrar nos custos de transporte os danos gerados por essa atividade, por meio de ecotaxas apropriadas.

3) Relocalizar as atividades. Sobretudo questionando o volume considerável de deslocamentos de homens e de mercadorias no planeta, considerando-se o impacto nefasto deles sobre o meio ambiente.

4) Restaurar a agricultura camponesa, on seja, estimular a produção mais local, sazonal, natural,
tradicional possível, (suprimir progressivamente o uso de pesticidas químicos alergênicos, neurotóxicos, imunodepressores, mutagênicos, carcinogênicos, perturbadores endócrinos e, portanto, reprotóxicos (que podem provocar esterilidade).

5) Transformar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e em criação de empregos, enquanto persistir o desemprego. É preciso inverter as prioridades: dividir o trabalho e aumentar o lazer.

6) Impulsionar a "produção" de bens relacionais, como a amizade ou o conhecimento, cujo estoque disponível, "consumido" por mim, não diminui, muito pelo contrário.

7) Reduzir o desperdício de energia por um fator 4.

8) Taxar pesadamente as despesas com publicidade.

9) Decretar uma moratória sobre a inovação tecnocientífica, fazer um balanço sério e reorientar a pesquisa científica e técnica em função das novas aspirações.

"Não é possível resolver a crise ambiental sem resolver os problemas sociais", dizia Murray Bookchin em 1992"'. Sem dúvida, mas hoje a recíproca talvez seja ainda mais verdadeira.

Sem um "reencantamento" da vida, também o decrescimento estaria fadado ao fracasso. Resta a necessidade de devolver sentido ao tempo liberado.

Enquanto o trabalho assalariado não for transformado, as classes laboriosas não terão "aptidão para o lazer", ou seja, "os meios objetivos e subjetivos para ocupar o tempo liberado mediante atividades autônomas". Um tempo qualitativo.

Se por um lado, Big Brother é anônimo, por outro, a servidão dos sujeitos é hoje mais voluntária que
nunca, pois a manipulação da publicidade comercial é infinitamente mais insidiosa que a da  propaganda política. Como, nessas condições, enfrentar megamáquina? Se não insistimos na crítica específica do capitalismo é porque nos parece inútil chover no molhado.

Uma "superação” (se possível, em boa ordem) da modernidade, sair do desenvolvimento, da economia e do crescimento não implica renunciar a todas as instituições sociais que a economia anexou, mas implica reinserí-las numa outra lógica.

Questionar a devastação da natureza, ou mesmo o massacre das outras espécies, e sair de um antropocentrismo estreito. Por isso é que nosso combate se situa decididamente contra a globalização e o liberalismo econômico.

Uma crítica do desenvolvimento, do crescimento, do progresso, da técnica e, finalmente, da modernidade, evidenciada pela ditadura dos mercados financeiros, implica em uma ruptura com o ocidentalocentrismo.

A realização de um a sociedade do decrescimento passa necessariamente por um reencantamento do mundo.




quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Pensando com Zizek

Este deve ter sido um dos melhores livros que li nos últimos tempos.


Não tenho nenhum ganho financeiro nem direto nem indireto
o que invalida a hipótese de pirataria, e no mais,  a divulgação livre
de conhecimento só é impedida por crápulas amorais e desprezíveis.


Zizek é realmente um pensador de primeira linha.
Sua navegação entre diversas áreas (me parece um TDAH "funcional"! :oD) de maneira tão arrojada e profunda é de tirar o fôlego. Vai da psicanálise à dialética hegeliana num pulo, e de religião ao cinema em outro.

Falar mal do capitalismo hoje, entre os que pensam, já é chutar cachorro morto. A questão interessante fica em analisar como ele passa de um conceito econômico para uma cultura e, mais ainda, para uma religião (e seu deus mercado).

Utilizando a distribuição nos moldes das 5 fases do luto (negação, raiva, barganha, depressão e aceitação da Dra  Elisabeth Kubler-Ross), Zizek nos leva a compreender como aceitamos a "solução" capitalista, como ela vira uma cultura transformando suas falhas em possibilidades de lucro, como ela encampa e destrói a política social transformando a política clássica modificadora num mero dogma de política econômica (a era da não política como lembra Bauman) e como isso nos levou a uma sensação de ausência de alternativas e aceitação resignada da condição de precário (o precariado, a nossa classe que substituiu o proletariado).

Revisitando Marx como estudioso respeitado do autor que é, se valendo de sua imensa bagagem em psicanálise lacaniana (é seu "berço" profissional e acadêmico) e da expertise em Hegel como filósofo que também é, Zizek nos brinda com sua barbara análise da nossa transição da modernidade para a  pós-modernidade(?) de maneira profunda e repleta de ótimas referências (seus pitacos nos originais em alemão de Marx e Freud por si só já são uma marretada).

O capítulo da "Barganha" ("Retorno da crítica da economia política'") é um pouco "pesado" para quem, assim como eu, não é um profundo conhecedor de filosofia (mas nada que paciência, releituras e verificação da biografia não auxiliem) e o da "Depressão" ("O trauma neuronal ou o surgimento do cógito proletério") é um pouco sombrio em sua demonstração do tipo de ser (não) humano que a maioria está se transformando (o mar de filmes de zumbi que apareceram nos últimos anos não são mera coincidência), o consumidor que vira também uma mercadoria em si; "aquele que sobreviveu à própria morte, o que vive sem viver".

Sua critica à "democracia ocidental" é muito contundente.
Se de fato esta "democracia" representa os interesses burgueses e fatalmente sempre contorna o problema central, é totalmente previsível (assim como Bauman também descreve) nossa era 'apolítica' e nossa guinada conservadora. 

Nessa obra se compreende alguns porque's de Zizek ser controverso em seu próprio meio, o acadêmico. Ele crítica brutalmente os intelectuais de esquerda acomodados que, no fim, apenas adoram discursar o apocalipse confortavelmente instalados em suas salas de pesquisa.

Também é interessante compreender porque ele critica a "tolerância" (sendo super sintético, ele demonstra que a "tolerância" nada mais é que a transcrição da privacidade burguesa do espaço privado nas relações humanas e não é de fato a vivência da diferença em sua plenitude) e o "politicamente correto", que impede o debate e gera a "mudança possível" (qualquer semelhança com a esquerda brasileira a tempos atrás e aos demais liberais no mundo ocidental não é mera coincidência), que no fim é uma não mudança, já que o impossível deixa de sê-lo quando está em curso.

Isso não é uma resenha. Não estaria apto a fazê-lo.

É um convite aos seres pensantes e por consequência viventes a encarar essa "jornada em Zizek e à nossa matrix".




terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Comunidade, com Bauman

Uma obra digna de... bem, Bauman. Dispensa apresentações.

Algo pertinente no microcosmo das comunidades intencionais, ainda que, evidentemente, sua análise seja muita mais ampla, trazendo inclusive as origens e evolução do capitalismo (não criança, não há nada de "natural" no capitalismo...).

Enfim, demostra por que o microcosmo (as comunidades intencionais) não pode ser a trincheira "dos que rezam pra esse, esses ou nenhum deus"; "dos que comem isso ou aquilo"; "dos adeptos das 'epiritualices' new age"; e todos os outros guetos.
Se a comunidade intencional não for o berço político de alternativas (acima de tudo realmente plurais) e não "casernas" com o objetivo de isolar os "moralmente superiores", o que mais nos restará?!



Não tenho nenhum benefício econômico direto ou indireto com a partilha desse conhecimento.
Aliás, duvido que o próprio autor condenasse essa divulgação se estivesse vivo.


Uns pitacos:

"
Para dizê-lo de maneira curta e grossa: a emancipação de alguns exigia a supressão de outros. E foi isso exatamente o que aconteceu: esse acontecimento entrou para a história com o nome um tanto eufemístico de “revolução industrial”. As “massas” tiradas da velha e rígida rotina (a rede da interação comunitária governada pelo hábito) para serem espremidas na nova e rígida rotina (o chão da fábrica governado pelo desempenho de tarefas), quando sua supressão serviria melhor à causa da emancipação dos supressores. As velhas rotinas não serviam para esse objetivo — eram autônomas demais, governadas por sua própria lógica tácita e não negociável, e por demais resistentes à manipulação e à mudança, dado que excessivos laços de interação humana se entreteciam em toda ação de tal modo que para puxar um deles seria preciso mudar ou romper muitos outros. O problema não era tanto levar os que não gostavam de trabalhar a habituar-se com o trabalho (ninguém precisava ensinar às futuras mãos da fábrica que a vida significava uma sentença de trabalho duro), mas como torná-los aptos a trabalhar num ambiente novo em folha, pouco familiar e repressivo.

Para que se adaptassem aos novos trajes, os futuros trabalhadores tinham que ser antes transformados numa “massa:” despidos da antiga roupagem dos hábitos comunitariamente sustentados. A guerra contra a comunidade foi declarada em nome da libertação do indivíduo da inércia da massa. Mas o verdadeiro resultado — ainda que não dito — dessa guerra foi o oposto do objetivo declarado: a destruição dos poderes de fixar padrões e papéis da comunidade de tal forma que as unidades humanas privadas de sua individualidade pudessem ser condensadas na massa trabalhadora. A “preguiça” inata das “massas” não passou de uma (débil) desculpa. Conforme argumentei em Work, Consumerism and New Poor [Trabalho, consumismo e novos pobres] (1998), a “ética do trabalho” do início da era industrial foi uma tentativa desesperada de reconstituir, no ambiente frio e impessoal da fábrica, através do regime de comando, vigilância e punição, a mesma habilidade no trabalho que na densa rede de interação comunitária era alcançada de modo “natural” pelos artesãos e outros trabalhadores.

O século XIX, dos grandes deslocamentos, desencaixes e desenraizamentos (e também de tentativas desesperadas de reencaixar e reenraizar) chegava a seu fim quando Thorstein Veblen 11  falou em defesa do “instinto do trabalho bem-feito” aparentemente extinto, que “está presente em todos os homens” e “se afirma nas situações mais adversas”, para tentar reparar o dano. “Instinto de trabalho bem-feito” foi o termo que Veblen escolheu para um “gosto natural pelo trabalho efetivo e um desapreço pelo esforço fútil”, em sua opinião presente em todos os humanos. Longe de ser naturalmente preguiçosas e avessas ao trabalho, como insistia Freud em uníssono com uma longa série de críticos e resmungões, as pessoas tinham, muito antes que começassem as reprovações e a pregação, um senso do mérito da utilidade e da eficiência e do demérito da futilidade, desperdício e incapacidade... O instinto do trabalho bem-feito se expressa não tanto na insistência sobre a utilidade substancial quanto na rejeição à impossibilidade estética do que é obviamente fútil.

Se todos nos orgulhamos de um trabalho bem-feito, também temos, é o que sugere Veblen, uma repulsa inata pela labuta sem propósito, pelo esforço fútil, pela azáfama sem sentido. Isso era também a verdade das “massas”, acusadas desde o advento da moderna indústria (capitalista) do pecado mortal da indolência. Se Veblen está certo e a relutância em trabalhar viola os instintos humanos, então algo foi feito, de modo resoluto e forçado, para que a conduta “real” das “massas” desse credibilidade à acusação de indolência. Esse “algo” foi o lento mas inexorável desmantela-mento/desmoronamento da comunidade, aquela intrincada teia de interações humanas que dotava o trabalho de sentido, fazendo do mero empenho um trabalho significativo, uma ação com objetivo, aquela teia que constituía a diferença, como diria Veblen, entre o “esforço” (ligado aos “conceitos de dignidade, mérito e honra”) e a “labuta” (não ligada a qualquer daqueles valores e portanto percebida como fútil).

Segundo Max Weber, o ato constitutivo do capitalismo moderno foi a separação entre os negócios e o lar — o que significou ao mesmo tempo a separação entre os produtores e as fontes de sua sobrevivência (como acrescentou Karl Polanyi, invocando o insight de Karl Marx). Esse duplo ato libertou as ações voltadas para o lucro, e também aquelas voltadas para a sobrevivência, da teia dos laços morais e emocionais, da família e da vizinhança — simultaneamente esvaziando tais ações de todo o sentido de que eram, antes, portadoras. O que costumava ser um “esforço” nos termos de Veblen virou “labuta”. Já não era claro para os artífices e artesãos de ontem o sentido do “trabalho bem-feito”, e não havia mais “dignidade, mérito e honra” que decorressem dele. Seguir a rotina sem alma do chão da fábrica, sem ser observado pelo companheiro ou vizinho, mas apenas pelo desconfiado capataz, obedecer aos movimentos ditados pela máquina sem chance de admirar o produto do próprio esforço, e muito menos de apreciar sua qualidade, tornavam o esforço “fútil”; e um esforço fútil era o que o instinto do trabalho bem-feito levava os humanos a detestarem todo o tempo. E esse tão humano desgostar da futilidade e da falta de sentido é que era em realidade o alvo da acusação de preguiça formulada contra os homens, mulheres e crianças, afastados de seu ambiente comum e sujeitos a um ritmo que não determinavam nem ao menos compreendiam. A suposta “natureza” das mãos de fábrica era responsabilizada pelos efeitos da não-naturalidade do novo meio social. O que os gerentes da indústria capitalista e os pregadores morais que corriam em sua ajuda queriam através da “ética do trabalho” que projetavam e pregavam era forçar ou inspirar os trabalhadores a desempenharem as “tarefas fúteis” com a mesma dedicação e abandono com que costumavam perseguir o “trabalho bem-feito”. 

John Stuart Mill assim resumiu a disposição dominante da época (de que se ressentia profundamente): 'A sina dos pobres, em tudo o que os afeta coletivamente, era controlada para eles e não por eles... Compete às classes mais altas pensarem por eles, e assumir a responsabilidade por seu destino... [para que possam] resignar-se... a uma verdadeira despreocupação, repousando à sombra de seus protetores...
Os ricos devem ficar in loco parentis dos pobres, guiando-os e sujeitando-os como crianças.'

Olhando com ironia e ceticismo a fúria com que os reformadores e revolucionários desmantelavam os arranjos sociais existentes, Alexis de Tocqueville sugeria que, ao declarar guerra ao “atraso” e “paroquialismo” da sociedade camponesa-artesanal, a classe empresarial emergente estava chutando um cavalo morto; pois a comunidade local estava em avançado estado de decomposição muito antes do início da construção da nova ordem. Isso bem pode ter acontecido, mas qualquer que fosse seu estado de putrefação, a comunidade local continuava a ser percebida como “perigosamente poderosa” durante os longos anos que durou a adaptação dos camponeses e artesãos à nova disciplina das fábricas. Essa sensação dava força ao fervor e ao engenho com que os donos e os gerentes da indústria lutavam para controlar a conduta de sua força de trabalho e para sufocar toda manifestação de espontaneidade e livre arbítrio. 

Duas tendências acompanharam o capitalismo moderno ao longo de toda sua história, embora sua força e importância tenham variado no tempo. Uma delas já foi assinalada: um esforço consistente de substituir o “entendimento natural” da comunidade de outrora, o ritmo, regulado pela natureza, da lavoura, e a rotina, regulada pela tradição, da vida do artesão, por uma outra rotina artificialmente projetada e coercitivamente imposta e monitorada. A segunda tendência foi uma tentativa muito menos consistente (e adotada tardiamente) de ressuscitar ou criar ab nihilo um “sentido de comunidade”, desta vez dentro do quadro da nova estrutura de poder.

A primeira tendência atingiu seu ponto culminante por volta do começo do século XX com a linha de montagem e o “estudo do tempo e do movimento” e da “organização científica do trabalho” de Frederick Taylor, que pretendia separar o desempenho produtivo dos motivos e sentimentos dos trabalhadores. Os produtores deveriam ser expostos ao ritmo impessoal da máquina, que estabeleceria o ritmo do movimento e determinaria qualquer gesto; não sobraria espaço, nem ele deveria ser reservado, para a escolha pessoal. O papel da iniciativa, da dedicação e da cooperação, mesmo para as “aptidões vivas” dos operadores (preferivelmente transferidas para a máquina) deveria ser reduzido ao mínimo. A dinâmica e a rotinização do processo de produção, a impessoalidade da relação entre trabalhador e máquina, a eliminação de todas as dimensões do papel produtivo que não as tarefas fixas da produção, e a resultante homogeneidade das ações dos trabalhadores formavam o exato oposto do ambiente comunitário em que se inscrevia o trabalho pré-industrial. O chão da fábrica deveria ser o equivalente, comandado pela máquina, da burocracia que, segundo o modelo ideal esboçado por Max Weber, tinha como objetivo a irrelevância total dos laços e compromissos sociais estabelecidos e mantidos fora do escritório e do horário de trabalho. Os resultados do trabalho não deveriam ser afetados por fatores tão pouco confiáveis e flutuantes como o “instinto de obra bem-feita” com sua fome de honra, mérito e dignidade e, acima de tudo, sua aversão à futilidade.

A segunda tendência corria paralela à primeira, tendo começado cedo nas “cidades modelo” de alguns filantropos que associavam o sucesso industrial a um fator de “sentir-se bem” entre os trabalhadores. Em lugar de confiar exclusivamente nos poderes coercitivos da máquina, apostavam nos padrões morais dos trabalhadores, sua piedade religiosa, na generosidade de sua vida familiar e sua confiança no chefe-patrão. As cidades modelo construídas em torno das fábricas estavam equipadas com moradias decentes, mas também com capelas, escolas primárias, hospitais e confortos sociais básicos — todos projetados pelos donos das fábricas junto com o resto do complexo de produção. A aposta era na recriação da comunidade em torno do lugar de trabalho e, assim, na transformação do emprego na fábrica numa tarefa para “toda a vida”.
"

... sobre o precariado (nós todos, exceto se algum bilionário está a ler...)

"Como Pierre Bourdieu não se cansou de observar, o estado de permanente précarité — insegurança quanto à posição social, incerteza sobre o futuro da sobrevivência e a opressiva sensação de “não segurar o presente”— gera uma incapacidade de fazer planos e segui-los. Quando a ameaça da mudança unilateral ou do fim dos arranjos correntes por parte daqueles que decidem o meio em que os afazeres da vida devem ser realizados paira perpetuamente sobre as cabeças daqueles que os realizam, as chances de resistência aos movimentos dos detentores do poder, e particularmente de resistência firme, organizada e solidária, são mínimas — virtualmente inexistentes. Os detentores do poder não têm o que temer e assim não sentem necessidade das custosas e complicadas “fábricas de
obediência” ao estilo panóptico. Em meio à incerteza e à insegurança, a disciplina (ou antes a submissão à condição de que “não há alternativa”) anda e se reproduz por conta própria e não precisa de capatazes para supervisionar seu abastecimento constantemente atualizado...

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De longe a mais dura das gaiolas de ferro em que a vida média costumava ser inscrita era o quadro social em que se ganhava o sustento: o escritório ou a planta industrial, os trabalhos ali realizados, as habilidades necessárias para realizá-los e a rotina diária. Solidamente encapsulado nessa moldura, o trabalho podia razoavelmente ser visto como uma vocação ou a missão de uma vida: como o eixo em torno do qual o resto da vida se revolvia e ao longo do qual se registravam as realizações. Agora, esse eixo está irreparavelmente quebrado. Em lugar de ter ficado “flexível”, como os porta-vozes do admirável mundo novo gostariam que fosse percebido, ele se tornou frágil e quebradiço. Nada pode (ou deveria) ser fixado a esse eixo com segurança — confiar em sua durabilidade seria ingênuo e poderia ser fatal. Até os escritórios mais veneráveis e as fábricas mais orgulhosas de seu longo e glorioso passado tendem a desaparecer da noite para o dia e sem aviso; empregos tidos como permanentes e indispensáveis, do tipo “impossível passar sem eles”, se evaporam antes que o trabalho esteja terminado, habilidades outrora febrilmente procuradas, sob forte demanda, envelhecem e deixam de ser vendáveis muito antes da data prevista de expiração; e rotinas de trabalho são viradas de cabeça para baixo antes de serem aprendidas. A “porção de comida” no suposto fim do caminho se desloca ou apodrece mais rápido e antes que mesmo o mais inteligente dos ratos tenha aprendido como chegar até ela...

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O tipo de incerteza, de obscuros medos e premonições em relação ao futuro que assombram os homens e mulheres no ambiente fluido e em perpétua transformação em que as regras do jogo mudam no meio da partida sem qualquer aviso ou padrão legível, não une os sofredores: antes os divide e os separa. As dores que causam aos indivíduos não se somam, não se acumulam nem condensam numa espécie de “causa comum” que possa ser adotada de maneira mais eficaz unindo as forças e agindo em uníssono. A decadência da comunidade nesse sentido se perpetua; uma vez instalada, há cada vez menos estímulos para deter a desintegração dos laços humanos e para procurar meios de unir de novo o que foi rompido. A sina de indivíduos que lutam em solidão pode ser dolorosa e pouco atraente, mas firmes compromissos a atuar em conjunto parecem prometer mais perdas do que ganhos..."

...dos filhos dos babyboomers e o discurso arrotado do self made man...

"Na verdade, os filhos dos militantes (do trabalho) obtiveram suas promoções individuais graças ao seguro comunitário contra azares individuais que os pais construíram para eles. Mas não gostam de ser lembrados de como foi que ficaram auto-suficientes; não vêem razão por que os outros não sejam como eles, desde que se comportem como eles. Reconstroem seu próprio desagrado com a  dependência” de que não mais precisam como uma condenação moral universal da dependência de que os menos afortunados precisam como do ar que respiram e que não podem dispensar." 

...da nossa democracia fake (não é diferente daqui)...

"Sob os presidentes Carter e Clinton, o Partido Democrata sobreviveu afastando-se dos sindicatos e de qualquer menção à redistribuição, movendo-se para um vácuo estéril chamado de “centro”... Foi como se a distribuição da renda e da riqueza tivesse virado um tópico assustador demais para ser mencionado por qualquer político norte-americano... E assim a escolha entre os dois partidos principais acabou como uma escolha entre mentiras cínicas e um silêncio temeroso..."

...da secessão dos "bem sucedidos"...

"Hoje, porém, o “cool” se transformou na visão do mundo dos importantes, inteiramente conservadores em suas ações e nas preferências que essas ações exemplificam, quando não em seu auto-elogio explícito (e enganador). Essa ordem cada vez mais conservadora se funda nos impressionantes poderes do mercado de consumo e do que resta das instituições políticas outrora autônomas. O “cool”, sugerem Pountain e Robins, “parece estar usurpando o lugar da ética do trabalho para instalar-se como forma mental dominante do capitalismo de consumo avançado”. 

“Cool” significa “fuga ao sentimento”, fuga “da confusão da verdadeira intimidade, para o mundo do sexo fácil, do divórcio casual, de relações não possessivas. 

Dada a completa perda da fé em alternativas políticas radicais, o  cool diz hoje respeito  principalmente ao consumo. Esse é o “cimento” que preenche a contradição escancarada — cool é a maneira de viver com as expectativas rebaixadas, indo às compras... O gosto pessoal é elevado a um 
ethos completo; você é aquilo de que gosta e, portanto, aquilo que você compra."

...e sua instalação na cidades com a ausência de comunhão...

"O mesmo pode ser dito dos bem-sucedidos em secessão dos dias de hoje. As “comunidades cercadas” pesadamente guardadas e eletronicamente controladas que eles compram no momento em que têm dinheiro ou crédito suficiente para manter distância da “confusa intimidade” da vida comum da cidade são “comunidades” só no nome. O que seus moradores estão dispostos a comprar ao preço de um braço ou uma perna é o direito de manter-se à distância e viver livre dos intrusos.
“Intrusos” são todas as outras pessoas, culpadas de ter suas próprias agendas e viver suas vidas do modo como querem. A proximidade de outras agendas e de modos de vida alternativos solapa o conforto de “acabar rapidamente e começar do começo”, e por isso os “intrusos” são objetos de ressentimento porque visíveis e embaraçosos...
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O mundo habitado pela nova elite não é porém definido por seu “endereço permanente” (no antigo sentido físico e topográfico). Seu mundo não tem outro “endereço permanente” que não o e-mail e o
número do telefone celular. A nova elite não é definida por qualquer localidade: é em verdade e plenamente extraterritorial. 

Só a extraterritorialidade é garantida contra a comunidade, e a nova “elite global” que, exceto pela companhia inevitável (e às vezes agradável) dos maîtres, arrumadeiras e garçons, é sua única detentora e quer que assim seja...
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Ser extraterritorial não significa, no entanto, ser portador de uma nova síntese cultural global, ou mesmo estabelecer laços e canais de comunicação entre áreas e tradições culturais. Há uma interface muito estreita, se houver alguma, entre o “território da extraterritorialidade” e as terras em que seus vários postos avançados e hospedarias intermediárias por acaso se situam. Como observam os pesquisadores da Virgínia, os executivos globais que entrevistaram...
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Quando no exterior, a maioria dos entrevistados tende a interagir e socializar com outros “globalizados”... Onde quer que vão, os hotéis, restaurantes, academias de ginástica, escritórios e aeroportos são virtualmente idênticos. Num certo sentido habitam uma bolha sociocultural isolada das diferenças mais ásperas entre diferentes culturas nacionais... São certamente cosmopolitas, mas de maneira limitada e isolada...
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Acima de tudo, a “bolha” em que a elite cosmopolita global dos negócios e da indústria cultural passa a maior parte de sua vida é — repito — uma zona livre de comunidade. 
É um lugar onde uma reunião,entendida como mesmice (ou mais precisamente,  uma insignificância de idiossincrasias) de indivíduos encontrados por acaso e “ necessariamente irrelevantes”, e uma individualidade, entendida como a facilidade não- problemática com que as parcerias são celebradas e abandonadas, são exercidas dia a dia em lugar de todas as outras práticas socialmente compartilhadas. A “secessão dos bem-sucedidos” é, antes e acima de tudo, uma fuga da comunidade...
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Os poderosos e bem-sucedidos” não podem dispensar com facilidade a visão meritocrática do mundo sem afetar seriamente o fundamento social do privilégio que prezam e do qual não têm intenção de abrir mão. E enquanto essa visão de mundo for mantida e considerada o cânone da virtude pública, o princípio comunitário do compartilhamento não pode ser aceito. A avareza que resulta numa relutância a pôr a mão no bolso não é talvez a única razão, talvez nem mesmo a principal, dessa não-aceitação. Há coisas mais importantes que o mero desapreço pelo auto-sacrifício: o princípio mesmo que fundamenta uma ambicionada distinção social é que está em jogo. Se qualquer coisa além do mérito imputado fosse reconhecida como título legítimo às recompensas oferecidas, aquele princípio perderia sua maravilhosa capacidade de conferir dignidade ao privilégio. Para os poderosos e bem-sucedidos” o desejo de “dignidade, mérito e honra” paradoxalmente exige a negação da comunidade.

Por mais verdade que isso seja, não é toda a verdade. Os “poderosos e bem-sucedidos” podem ressentir-se, ao contrário dos fracos e derrotados, dos laços comunitários — mas da mesma forma que os demais homens e mulheres podem achar que a vida vivida sem comunidade é precária, amiúde insatisfatória e algumas vezes assustadora. Liberdade e comunidade podem chocar-se e entrar em conflito, mas uma composição a que faltem uma ou outra não leva a uma vida satisfatória.

A necessidade dos dois ingredientes é sentida de maneira ainda mais forte porque a vida, em nossa sociedade globalizada e rapidamente desregulada que gerou a nova elite cosmopolita, mas que foi definida, na célebre expressão de Ulrich Beck, como Risikogessellschaft, sociedade do risco, é uma Risikoleben, uma vida de risco... 
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A nova elite, com carros próprios em quantidade suficiente para não se preocupar com o estado lamentável do transporte público, de fato destruiu as pontes que seus pais tinham atravessado à medida que as deixava para trás, esquecendo que essas pontes eram construídas e usadas socialmente — e que, se assim não fosse, ela mesma não teria chegado aonde chegou. Em termos práticos, a nova elite global lavou as mãos em relação à questão do “transporte público”. A “redistribuição” está definitivamente excluída, lançada à lata de lixo da história, junto com outros lamentáveis erros de julgamento que são hoje retrospectivamente responsabilizados pela opressão da autonomia individual e portanto também pelo estreitamento daquele “espaço” de que todos, como gostamos de repetir, “precisamos cada vez em maior quantidade”. E portanto também está eliminada a comunidade, entendida como um lugar de compartilhamento do bem-estar conjuntamente conseguido; como uma espécie de união que supõe a responsabilidade dos ricos e dá substância às esperanças dos pobres de que essa responsabilidade será assumida."