sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Ideologias de Carbono

Viver muito?
Se reproduzir?
Pra quem cara pálida?
Além do narcisismo me parece sadismo...


Reproduzindo:

Os escritores gostam de se autoelogiar imaginando para seu trabalho um “leitor ideal”, uma presença querubina dotada de generosidade infinita, da simpatia de um pai e da sabedoria, bem, dos próprios autores. Em Carbon Ideologies (Ideologias de Carbono), William T. Vollmann imagina para si mesmo o oposto: um leitor barbaramente hostil que zomba de seus argumentos, ridiculariza sua debilidade mental, desdenha suas patéticas tentativas até a ingratidão. Vollmann não pode culpar esse leitor, a quem se dirige regularmente no decorrer de Ideologias de Carbono, porque ela vive no futuro, sob circunstâncias radicalmente diferentes – habitando “um planeta mais quente, mais perigoso e diminuído biologicamente”. Ele a imagina virando as páginas de sua obra sobre mudanças climáticas dentro dos escuros recessos de uma caverna subterrânea onde procurou abrigo do calor insuportável; pragas, secas e inundações; bolas de fogo de metano atravessando oceanos ferventes. Como o solo é radioativo, ela sobrevive de insetos e de urina reciclada, e olha com desprezo implacável seus ancestrais, que, como o autor lhe diz, “desfrutamos do mundo que possuíamos e merecemos o mundo que deixamos”.

Ideologias de Carbono é um trabalho único publicado em duas partes, No Immediate Danger (Nenhum Perigo Imediato) e No Good Alternative (Nenhuma Alternativa Boa). A bifurcação deve-se à insistência do exausto editor de Vollmann e aos limites da moderna encadernação. De todos os escritores em atividade hoje, Volmann deve ser o mais livre: ele escreve ficção, ensaios, monografias, críticas, memórias e história, geralmente misturando várias formas de uma só vez, sobre temas tão diversos quanto teatro Nô japonês, passeios de trem, e a guerra de Nez Perce, dilatando-os até a extensão que lhe convier.
Como acontece frequentemente com Vollmann, décadas de atrito com seus editores respingam nas páginas do livro. Ideologias de Carbonocomeça com a confissão de que o manuscrito original era “várias vezes mais longo do que o máximo estipulado por contrato”; depois de “ansiosas negociações”, seu editor “finalmente concordou em satisfazer-me mais uma vez”. Não seu editor de não-ficção – do qual ele se afastou depois de receber uma proposta de adiantamento inferior à quantia que já gastara em pesquisa –, mas seu editor de ficção. (“Espero sinceramente que algum dia tudo isso valha a pena para você”, escreve ele em amoroso reconhecimento.) A editora Viking manteve a linha até as notas finais, que chegam a 129 mil palavras e podem ser examinadas online ou no arquivo de Vollmann na Ohio State University.
As 1.268 páginas que restam são tão gloriosa e loucamente inclassificáveis quanto a maioria do trabalho de Vollmann. A analogia mais próxima é Rising Up and Rising Down, seu tratado de 3300 páginas sobre violência, com sete volumes, que Vollmann chama de texto de companhia. Ideologias de Carbono é sobre outro tipo de violência, a violência infligida pela produção de carvão, gás natural, petróleo e energia nuclear. As vítimas dessas ideologias de carbono são não somente as espécies da fauna e da flora que serão extintas, os frágeis ecossistemas que serão destruídos, e as gerações futuras de humanos que terão de sobreviver de insetos. As vítimas somos nós – nós que estamos vivendo agora e que negamos, em vários níveis, o tamanho do dano que estamos causando a nós mesmos. Ideologias de carbono é uma crônica da automutilação.
É também um almanaque sobre o uso global de energia. O volume inicial abre com um manual cheio de tabelas, listas e dados (“garanto que você não perderá nada pulando à página 217”) e conclui com 80 páginas de definições, unidades e conversões (“Os leitores devem sentir-se livres para pular essa seção”). É um diário de viagem a paisagens naturais destruídas pela produção de energia, principalmente Fukushima (nuclear), West Virginia (carvão), Colorado (gás natural) e Emirados Árabes Unidos (petróleo). É um trabalho de história oral, que contém dezenas de entrevistas com operários que trabalham ou vivem ao lado de reatores nucleares, cavernas e refinarias de petróleo, juntos nos instantâneos do próprio Vollmann. E é um trabalho piedoso de antropologia, que tenta dar sentido à falta de capacidade do ser humano para pesar a catástrofe futura contra o conforto de curto prazo. Ideologias de Carbono é mais fascinante, contudo, pelo que não é: uma polêmica.
Praticamente todos os livros sobre mudanças climáticas que foram escritos para o público em geral contêm uma mensagem de esperança, e frequentemente uma chamada para a ação. Vollmann declara desde o início que não irá oferecer nenhuma solução, porque não acredita ser possível: “Nada pode ser feito para salvar [o mundo como o conhecemos]; portanto, nada precisa ser feito”. Isso faz de Ideologias de Carbono, com todos os seus méritos e falhas, um dos livros mais honestos já escritos sobre mudanças climáticas. O empreendimento de Vollmann está na vanguarda da segunda onda de literatura climática, livros escritos não para diagnosticar ou resolver o problema, mas para lidar com suas consequências morais.
É também um projeto profundamente idiossincrático: o idioleto de Vollmann é obsessivo, meticuloso, inquieto, hiperobservador e orgulhosamente amador. Os dados que ele apresenta são às vezes reveladores. Um sem-teto nos Estados Unidos usa duas vezes mais energia que o cidadão médio global; 61% da energia gerada nos EUA em 2012 “não realizaram nenhum trabalho útil”; de 1980 a 2011, o uso global de energia praticamente triplicou. Em outros lugares, os dados são impossivelmente arcanos (“Desperdício de Energia por Máquinas-Ferramentas”, em “Dedução de máquinas inativas”) ou desafiadoramente não-científicos (“Sinto muito por não conseguir tornar minha tabela simples, completa ou precisa”). Seu insaciável apetite por detalhes produz tanto trivialidades irrelevantes (“Embarcando no Super Limitado Hitachi Express, que também era conhecido como o Super Hitachi 23 Limited Express”) como retratos magistrais de paisagens profanadas por escavações e mais escavações — ou, no caso de Virgínia Ocidental, montanhas com cumes extirpados.
A seção sobre Fukushima é especialmente incomum em sua evocação de uma paisagem costeira vibrando com raios gama. Vollmann respira um vento fresco “cujo grau de contaminação particulada era, claro, desconhecida”, ouve numa rua silenciosa, à noite, o grunhido de um javali radioativo, e anda sobre cacos de vidro de uma loja de roupas abandonada, anunciando uma liquidação com 50% de desconto e povoada por manequins sem cabeça. Embora fissão nuclear não produza emissão de gases de efeito estufa, seus horrores passam a representar os das mudanças climáticas, um vasto terror invisível para os vitimados por ela – pelo menos a curto prazo. Embora Vollmann refira-se aos capítulos de Fukushima quando escreve que seu projeto é apoiado em “pouco mais que cegueira, desconforto, desamparo e ignorância”, ele está descrevendo todas as Ideologias de Carbono.
Essas qualidades atingem sua mais completa expressão nas declarações feitas por funcionários do governo ou das corporações contra alertas de ameaça ambiental. Em Fukushima, objetos na zona de precipitação não são radioativados, mas “contaminados”. Em Virginia Ocidental, as montanhas não têm seus cumes arrancados, mas garantem “remoção de sobrecarga”. A extração de petróleo por explosão de rochas (“Fracking”) “é mais segura e tem impacto ambiental menor do que dirigir um carro”, alega um diretor de marketing da Shale Crescent USA, e os mineiros de carvão, segundo o presidente da Associação de Carvão de Virginia Ocidental, “são os maiores ambientalistas práticos do mundo”. Vollmann registra essas insanidades ao lado de observações de personagens como Buda (“As pessoas são ignorantes e egoístas”), Edmund Spenser (“Pior é o perigo escondido que o descrito”), e Loren Eiseley (“Assim como os instintos podem falhar num animal submetido a mudança nas condições ambientais, as crenças culturais do homem podem ser inadequadas para enfrentar uma nova situação”). Vollmann anseia por provar que Buda, Spenser e Eiseley estão errados e submete questões-relâmpago a todos os executivos do setor que encontra; mas, fora do Japão, quase ninguém em posição de autoridade concorda em comentar.
A maioria das longas entrevistas que dominam Ideologias de Carbonosão, assim, realizadas com homens que trabalham em cavernas ou cavas para produzir a energia que desperdiçamos. Se “nada é mais medonho que ver a ignorância em ação” (Goethe), esses encontros são um pesadelo desperto. Trabalhadores de refinaria de petróleo no México, mineiros de carvão em Bangladesh, e operadores de fracking no Colorado estão unidos em sua grande apreensão pelos danos ambientais que seu trabalho causa, para não mencionar os fatos básicos das mudanças climáticas e suas ramificações. “A maioria de suas respostas foram calmas e brandas”, relata Vollmann, embora isso não o impeça de registrá-las longamente, quase textualmente. Às vezes suas perguntas provocam uma joia de lirismo acidental, como quando o trabalhador metalúrgico indiano de uma companhia petrolífera dos Emirados Árabes Unidos, diante da pergunta sobre sua opinião a respeito das mudanças climáticas, responde: “Agora um pouquinho bom; mas no futuro, muito perigo”. Melhor, impossível.
Vollmann não culpa o metalúrgico imigrante por sua complacência ou ignorância, é claro. Culpa a si mesmo – frequente e profusamente. Parece deliciar-se especialmente em quantificar, em cuidadosos detalhes, a energia que queima em atividades como escrever um rascunho de Ideologias de Carbono, dobrar a esquina de seu hotel em Tóquio para comprar uma bandeja de tonkatsu numa loja de conveniência e fazer um milkshake para sua filha. Essas passagens são tão instrutivas quanto tediosas. Elas dramatizam não só a obstinação de nossa dependência de combustíveis fósseis, mas a impossibilidade de compreender de verdade nossa própria culpa pelo destino do planeta. Com que frequência você para pra pensar sobre a quantidade de carvão queimado cada vez que pega um elevador, carrega seu telefone ou usa seu liquidificador? Mesmo atos extravagantes de autonegação são impotentes diante de consumo tão perdulário. Vollmann compara nossos mais ambiciosos esforços para conservar energia a alguém que faz dieta e continua comendo sua dose diária de doces e sorvetes … apesar do louvável fato de ter comido brócolis no almoço da quinta-feira passada.
A fome global por doces é mais voraz a cada ano que passa. Quaisquer que sejam as economias de bom samaritano que possamos fazer, melhorando a infraestrutura ou pedalando para o trabalho, elas serão superadas pela ampliação do sistema de consumo nas próximas décadas. Cerca de um terço da população humana cozinha suas refeições com biomassa – madeira, carvão, restos agrícolas e esterco animal. Quase um bilhão de pessoas não têm acesso à eletricidade. Não será preciso que toda a Índia adote “o modo de vida norte-americano” para provocar aumentos gigantescos nas emissões globais. A ascensão da Índia ao modo de vida da Namíbia será suficiente.
Os problema da demanda, do crescimento, da complexidade, do custo-benefício, da indústria; o problema político, o do atraso geracional, da negação – Vollmann cataloga escrupulosamente todos os principais problemas não resolvidos que contribuem para o colosso das mudanças climáticas. “Qualquer ‘solução’ que eu tivesse proposto em 2017”, escreve, “teria sido adiada até que os oceanos subissem mais dois centímetros!” (O título do capítulo final, “Um raio de esperança”, deve ser lido sarcasticamente). Nem os seis anos de viagens pelo mundo tabulando dados e entrevistando especialistas mudaram qualquer aspecto essencial do seu pensamento sobre o assunto. O leitor que começa a ler Ideologias de Carbono sem esperança irá terminá-lo sem esperança. Também o leitor esperançoso.
Mas há outros tipos de leitores – aqueles que não buscam conselhos ou encorajamento ou conforto. Aqueles que estão fartos de cruzadas de desonestidade baseadas em otimismo. Aqueles que procuram entender a natureza humana e a si mesmos. Porque o verdadeiro assunto de Vollmann é a natureza humana – e é o que deve ser. A história das mudanças climáticas depende do comportamento humano, não da geofísica. Vollmann procura entender como “pudemos não apenas sustentar, mas acelerar o aumento dos níveis de carbono atmosférico, ao mesmo tempo em que expressamos confusão, impotência e ressentimento”. Por que assumimos riscos tão insanos? Não poderíamos ter nos comportado de nenhum outro modo? Podemos nos comportar de algum outro modo? Se não podemos, a que conclusões podemos chegar sobre nossas vidas e nosso futuro? Vollmann admite que até mesmo ele esquivou-se completamente de compreender os danos que causamos. “Nunca me odiei suficientemente para permitir a punição do pleno entendimento”, escreve ele. “Como poderia? Ninguém poderia.” Ele está certo, embora livros como o Ideologias de Carbono nos aproximem disso.

A atmosfera do planeta mudará, mas não a natureza humana. O insuficiente desejo de Vollmann é que os leitores futuros compreendam que teriam cometido os mesmos erros que cometemos. Isso pode parecer uma humilde ambição para um projeto dessa amplitude, mas só se você toma Ideologias de Carbono, erroneamente, como um trabalho de ativismo. O projeto de Vollmann não é absolutamente tão convencional. Sua “carta ao futuro” é uma mensagem de suicídio. Ele não busca uma intervenção – apenas aceitação. Se não o perdão, pelo menos aceitação.

Por Nathaniel Rich | Tradução: Inês Castilho

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Física e filosofia

Pra que ama física como eu e reconhece sua raiz inseparável da filosofia (afinal, em alguns países ainda existe a disciplina da filosofia natural, que, aliás, Marcelo Gleiser é professor), uma bela obra.

A Filosofia da Física de Lawrence Sklar.

https://mega.nz/#!dTZSlC4b!O4PRsnH7_yXzNL_eVgXwfddd42cnHuS5EulqtYjDG1g




Não tenho nenhum ganho financeiro nem direto nem indireto
o que invalida a hipótese de pirataria, e no mais,  a divulgação livre
de conhecimento só é impedida por crápulas amorais e desprezíveis.

Pitaco retirado de Philosophy of Physics, de Lawrence Sklar (Oxford University Press, 1992):

Filosofia da física e filosofia em geral

Lawrence Sklar
Tradução de Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus
Pode ser útil explicar por que razão o estudo dos fundamentos das teorias físicas e dos seus aspectos filosóficos é útil para os filósofos que não estejam especialmente preocupados com a natureza da física. Gostaria de sugerir que os problemas investigados pelos filósofos da física e os métodos que usam para abordar esses problemas podem também trazer alguma luz às questões filosóficas mais gerais.

Os filósofos da ciência estão interessados em questões como a natureza das teorias científicas, saber como estas teorias explicam os fenômenos do mundo, quais são as suas bases empíricas e inferenciais, e como esses dados empíricos podem ser vistos como algo que apoia ou desencoraja a crença numa hipótese. Podemos ganhar em perspicácia ao abordar estes problemas mais gerais no contexto de teorias específicas da física contemporânea. O vasto alcance das teorias e a sua natureza altamente explícita proporcionam um contexto onde muitos problemas da filosofia da ciência geral, que de outro modo seriam bastante vagos, se tornam mais “fixos” quando concentramos a atenção nessas teorias físicas específicas.
Como essas teorias apresentam um elevado grau de formalização, o lugar nelas ocupado por conceitos cruciais encontra-se estabelecido de uma maneira simples e clara. Questões sobre o significado de conceitos cruciais, sobre a sua eliminabilidade ou irredutibilidade, sobre as suas relações definicionais, etc., ficam assim sujeitas a um exame rigoroso. É mais difícil conduzir esse exame em relação a conceitos mais “vagos” de ciências menos bem formalizadas. Como veremos também, a relação entre a estrutura teórica e os fatos observacionais a partir dos quais esta é inferida é particularmente clara em muitos casos da física formal. Nas teorias sobre o espaço e o tempo, por exemplo, o próprio contexto da teorização científica pressupõe noções bastante definidas sobre o que pode contar como “fatos acessíveis a uma inspeção observacional direta”, que deverão fornecer toda a base empírica da teoria. Deste modo, questões como a de saber se a totalidade desses fatos poderá selecionar apenas uma alternativa teórica viável, apoiando-a mais do que a todos os seus rivais, são tratadas de uma maneira esclarecedora, maneira essa que não é possível no contexto geral da ciência. Neste último contexto, não existe uma noção clara dos limites da observabilidade nem uma delimitação clara da classe das alternativas teóricas possíveis a ter em consideração. Se explorarmos, no contexto das teorias fundamentais da física, problemas como o da eliminabilidade ou não eliminabilidade dos conceitos teóricos, ou o de saber até que ponto os fatos observacionais impõem limites às escolhas teóricas, teremos uma maneira de lidar com estes problemas metodológicos gerais: olhamos para casos específicos que dão uma clareza especial às questões filosóficas. As ideias adquiridas nesta área mais formalizável e delimitada podem beneficiar aqueles que se ocupam de problemas mais gerais.
Estas considerações podem de algum modo ser generalizadas. Os filósofos interessados nos problemas gerais da metafísica, epistemologia e filosofia da linguagem descobrirão que abordar questões desses domínios, tal como são exemplificadas em casos particulares e concretos da teoria física, lançará luz sobre as maneiras apropriadas de lidar com questões gerais. Não podemos progredir muito na compreensão das estruturas específicas das teorias físicas parciais sem usar os recursos fornecidos por aqueles que abordam os problemas mais gerais e fundamentais da filosofia. Além disso, não podemos progredir decisivamente nessas áreas mais gerais sem ver como os métodos e soluções gerais se comportam quando se aplicam a casos específicos. E os casos específicos dos fundamentos filosóficos das teorias físicas fundamentais são, também aqui, bastante apropriados para testar afirmações filosóficas gerais.
Devemos dar um pouco de atenção a um último assunto relacionado com este. Encontramos frequentemente na bibliografia sobre o tema afirmações muito ousadas segundo as quais a física contemporânea resolveu conclusiva e decisivamente debates filosóficos muito antigos. “A mecânica quântica refuta a tese de que todos os acontecimentos têm uma causa” é um exemplo frequente. Por vezes, surpreendentemente, ambos os lados de um debate filosófico afirmam que uma teoria resolve um problema a seu favor. Assim, tem-se defendido que a teoria da relatividade geral resolve decisivamente o problema da natureza do espaço; mas há quem defenda que esta teoria refuta o substantivismo, enquanto outros sustentam que resolve o debate a favor dessa doutrina! Estas afirmações ousadas e injustificadas são enganadoras, pois os problemas são complexos e os argumentos são por vezes frustrantes na sua subtileza e opacidade. Nestas circunstâncias, as pretensões a uma vitória decisiva de qualquer tipo devem ser encaradas pelo menos com algum cepticismo.
Temos de ter um cuidado especial em relação às conclusões filosóficas derivadas de resultados da física. Por analogia com o princípio GIGO das ciências da computação (garbage in, garbage out — “entra lixo, sai lixo”), chamaremos a este o princípio MIMO: metaphysics in, metaphysics out — “entra metafísica, sai metafísica”. Não há dúvida que qualquer tese filosófica deve ser reconciliada com os melhores resultados disponíveis da ciência física, nem tão pouco que o progresso da ciência tem produzido um antídoto útil para muito dogmatismo filosófico, mas ao considerar o que a física nos diz sobre questões filosóficas devemos ter sempre o cuidado de perguntar se a própria teoria física incorpora pressupostos filosóficos. Se descobrirmos que esses pressupostos foram incorporados na própria teoria, devemos estar preparados para examinar cuidadosamente se essa maneira de a apresentar é a única maneira de acomodar os seus resultados científicos, ou se poderão haver outros pressupostos que nos levariam a derivar conclusões filosóficas bastante diferentes, caso a teoria os incorporasse.

Objetivo e estrutura deste livro

Para terminar, vou apresentar algumas considerações sobre o objetivo e a estrutura deste livro. A investigação cuidada e sistemática de qualquer um dos grandes problemas da filosofia da física é uma tarefa demorada e difícil. Um domínio dos conteúdos das teorias fundamentais da física contemporânea requer um estudo prévio de um corpo de matemática vasto e difícil, já que as teorias se formulam frequentemente na linguagem poderosa e abstrata da matemática contemporânea. À formação matemática acresce ainda o estudo dos elementos específicos da física. Além de tudo isto, a investigação filosófica requer uma formação firme em muitos aspectos da filosofia analítica contemporânea: na metafísica, na epistemologia e na filosofia da linguagem.

Tentar fazer inteira justiça a qualquer um dos problemas centrais da filosofia da física numa obra introdutória deste tipo está, obviamente, fora de questão. O objetivo é antes o de proporcionar ao leitor um mapa das áreas de problemas centrais deste domínio. Este livro centra-se naquelas questões que, do meu ponto de vista, se apresentam como as mais importantes da filosofia da física. Muitos outros tópicos interessantes quase não serão considerados, e alguns não serão mesmo abordados, com o objetivo de dirigir a atenção tanto quanto possível para as questões mais cruciais e centrais.

Relativamente aos tópicos abrangidos, ofereço um esboço ou sinopse dos aspectos fundamentais das teorias físicas que estão em interação mais profunda com a filosofia. A minha esperança é oferecer uma abordagem dos problemas suficientemente concisa e clara de modo a orientar o leitor interessado pelos caminhos, por vezes labirínticos, dos debates centrais. Os capítulos 2, 3, e 4 são complementados por um guia bibliográfico anotado. O leitor interessado em seguir com algum pormenor os temas esboçados no texto encontrará nessas seções de referências um guia para os materiais de formação básica em matemática, física e filosofia, assim como um guia para as discussões contemporâneas mais importantes sobre o problema em causa. Não se pretende que as seções de referências sejam um levantamento exaustivo da bibliografia sobre qualquer dos temas considerados (uma bibliografia por vezes muito extensa), mas antes um guia seletivo dos materiais mais úteis para conduzir o leitor, de um modo sistemático, mais longe.

Embora tenha tentado incluir nas seções de referências materiais acessíveis a quem não tem uma vasta formação em matemática e física teórica, não excluí aqueles cuja compreensão requer uma formação nessas áreas. O material que exige uma formação bastante modesta desse tipo (ao nível intermédio de uma licenciatura, digamos) está assinalado com (*). O material que exige uma familiarização mais vasta com os métodos e conceitos técnicos está assinalado com (**).

As três áreas principais que vamos explorar neste livro são a do espaço e do tempo, a das teorias probabilísticas e estatísticas do tipo “clássico” e a da mecânica quântica. Isto vai permitir-nos examinar muitas das actuais áreas de problemas mais enigmáticas e fundamentais da filosofia da física. Outra área principal só será considerada casualmente, embora seja responsável pela introdução de muitos problemas extremamente interessantes que só em parte têm sido explorados. Trata-se da teoria geral da matéria e da sua constituição, tal como é descrita pela física contemporânea. Questões que surgem quando se postula o campo como um elemento básico do mundo, ou que emergem de problemas da teoria da constituição da matéria, ou dos microconstituintes da hierarquia que nos conduz das moléculas e dos átomos às partículas elementares (e talvez mais além), ou da teoria fundamental sobre as próprias partículas elementares, só serão focados de passagem quando lidarmos com as três áreas de problemas centrais acima indicadas.

Lawrence Sklar