Se reproduzir?
Pra quem cara pálida?
Além do narcisismo me parece sadismo...
Reproduzindo:
Os
escritores gostam de se autoelogiar imaginando para seu trabalho um “leitor
ideal”, uma presença querubina dotada de generosidade infinita, da simpatia de
um pai e da sabedoria, bem, dos próprios autores. Em Carbon
Ideologies (Ideologias de Carbono), William T. Vollmann
imagina para si mesmo o oposto: um leitor barbaramente hostil que zomba de seus
argumentos, ridiculariza sua debilidade mental, desdenha suas patéticas
tentativas até a ingratidão. Vollmann não pode culpar esse leitor, a quem se
dirige regularmente no decorrer de Ideologias de Carbono,
porque ela vive no futuro, sob circunstâncias radicalmente diferentes –
habitando “um planeta mais quente, mais perigoso e diminuído biologicamente”.
Ele a imagina virando as páginas de sua obra sobre mudanças climáticas dentro
dos escuros recessos de uma caverna subterrânea onde procurou abrigo do calor
insuportável; pragas, secas e inundações; bolas de fogo de metano atravessando
oceanos ferventes. Como o solo é radioativo, ela sobrevive de insetos e de urina
reciclada, e olha com desprezo implacável seus ancestrais, que, como o autor lhe
diz, “desfrutamos do mundo que possuíamos e merecemos o mundo que
deixamos”.
Ideologias de Carbono é um trabalho único publicado em duas
partes, No Immediate Danger (Nenhum Perigo
Imediato) e No Good Alternative (Nenhuma
Alternativa Boa). A bifurcação deve-se à insistência do
exausto editor de Vollmann e aos limites da moderna encadernação. De todos os
escritores em atividade hoje, Volmann deve ser o
mais livre: ele escreve ficção, ensaios, monografias, críticas,
memórias e história, geralmente misturando várias formas de uma só vez, sobre
temas tão diversos quanto teatro
Nô japonês, passeios de trem, e a guerra de Nez
Perce, dilatando-os até a extensão que lhe
convier.
Como
acontece frequentemente com Vollmann, décadas de atrito com seus editores
respingam nas páginas do livro. Ideologias de
Carbonocomeça com a confissão de que o manuscrito original era “várias
vezes mais longo do que o máximo estipulado por contrato”; depois de “ansiosas
negociações”, seu editor “finalmente concordou em satisfazer-me mais uma vez”.
Não seu editor de não-ficção – do qual ele se afastou depois de receber uma
proposta de adiantamento inferior à quantia que já gastara em pesquisa –, mas
seu editor de ficção. (“Espero sinceramente que algum dia tudo isso valha a pena
para você”, escreve ele em amoroso reconhecimento.) A editora Viking manteve a
linha até as notas finais, que chegam a 129 mil palavras e podem ser examinadas
online ou no arquivo de Vollmann na Ohio State
University.
As
1.268 páginas que restam são tão gloriosa e loucamente inclassificáveis quanto a
maioria do trabalho de Vollmann. A analogia mais próxima
é Rising
Up and Rising Down, seu
tratado de 3300 páginas sobre violência, com sete volumes, que Vollmann chama de
texto de companhia. Ideologias de Carbono é
sobre outro tipo de violência, a violência infligida pela produção de carvão,
gás natural, petróleo e energia nuclear. As vítimas dessas ideologias de carbono
são não somente as espécies da fauna e da flora que serão extintas, os frágeis
ecossistemas que serão destruídos, e as gerações futuras de humanos que terão de
sobreviver de insetos. As vítimas somos nós – nós que estamos vivendo agora e
que negamos, em vários níveis, o tamanho do dano que estamos causando a nós
mesmos. Ideologias de carbono é uma crônica
da automutilação.
É também um
almanaque sobre o uso global de energia. O volume inicial abre com um manual
cheio de tabelas, listas e dados (“garanto que você não perderá nada pulando à
página 217”) e conclui com 80 páginas de definições, unidades e conversões (“Os
leitores devem sentir-se livres para pular essa seção”). É um diário de viagem a
paisagens naturais destruídas pela produção de energia, principalmente Fukushima
(nuclear), West Virginia (carvão), Colorado (gás natural) e Emirados Árabes
Unidos (petróleo). É um trabalho de história oral, que contém dezenas de
entrevistas com operários que trabalham ou vivem ao lado de reatores nucleares,
cavernas e refinarias de petróleo, juntos nos instantâneos do próprio Vollmann.
E é um trabalho piedoso de antropologia, que tenta dar sentido à falta de
capacidade do ser humano para pesar a catástrofe futura contra o conforto de
curto prazo. Ideologias de Carbono é mais
fascinante, contudo, pelo que não é: uma polêmica.
Praticamente todos os livros sobre mudanças climáticas
que foram escritos para o público em geral contêm uma mensagem de esperança, e
frequentemente uma chamada para a ação. Vollmann declara desde o início que não
irá oferecer nenhuma solução, porque não acredita ser possível: “Nada pode ser
feito para salvar [o mundo como o conhecemos]; portanto, nada precisa ser
feito”. Isso faz de Ideologias de Carbono, com todos os
seus méritos e falhas, um dos livros mais honestos já escritos sobre mudanças
climáticas. O empreendimento de Vollmann está na vanguarda da segunda onda de
literatura climática, livros escritos não para diagnosticar ou resolver o
problema, mas para lidar com suas consequências morais.
É também um
projeto profundamente idiossincrático: o idioleto de Vollmann é obsessivo,
meticuloso, inquieto, hiperobservador e orgulhosamente amador. Os dados que ele
apresenta são às vezes reveladores. Um sem-teto nos Estados Unidos usa duas
vezes mais energia que o cidadão médio global; 61% da energia gerada nos EUA em
2012 “não realizaram nenhum trabalho útil”; de 1980 a 2011, o uso global de
energia praticamente triplicou. Em outros lugares, os dados são impossivelmente
arcanos (“Desperdício de Energia por Máquinas-Ferramentas”, em “Dedução de
máquinas inativas”) ou desafiadoramente não-científicos (“Sinto muito por não
conseguir tornar minha tabela simples, completa ou precisa”). Seu insaciável
apetite por detalhes produz tanto trivialidades irrelevantes (“Embarcando no
Super Limitado Hitachi Express, que também era conhecido como o Super Hitachi 23
Limited Express”) como retratos magistrais de paisagens profanadas por
escavações e mais escavações — ou, no caso de Virgínia Ocidental, montanhas com
cumes extirpados.
A seção
sobre Fukushima é especialmente incomum em sua evocação de uma paisagem costeira
vibrando com raios gama. Vollmann respira um vento fresco “cujo grau de
contaminação particulada era, claro, desconhecida”, ouve numa rua silenciosa, à
noite, o grunhido de um javali radioativo, e anda sobre cacos de vidro de uma
loja de roupas abandonada, anunciando uma liquidação com 50% de desconto e
povoada por manequins sem cabeça. Embora fissão nuclear não produza emissão de
gases de efeito estufa, seus horrores passam a representar os das mudanças
climáticas, um vasto terror invisível para os vitimados por ela – pelo menos a
curto prazo. Embora Vollmann refira-se aos capítulos de Fukushima quando escreve
que seu projeto é apoiado em “pouco mais que cegueira, desconforto, desamparo e
ignorância”, ele está descrevendo todas as Ideologias de
Carbono.
Essas
qualidades atingem sua mais completa expressão nas declarações feitas por
funcionários do governo ou das corporações contra alertas de ameaça ambiental.
Em Fukushima, objetos na zona de precipitação não são radioativados, mas
“contaminados”. Em Virginia Ocidental, as montanhas não têm seus cumes
arrancados, mas garantem “remoção de sobrecarga”. A extração de petróleo por
explosão de rochas (“Fracking”) “é mais segura e tem impacto ambiental menor do
que dirigir um carro”, alega um diretor de marketing da Shale Crescent USA, e os
mineiros de carvão, segundo o presidente da Associação de Carvão de Virginia
Ocidental, “são os maiores ambientalistas práticos do mundo”. Vollmann registra
essas insanidades ao lado de observações de personagens como Buda (“As pessoas
são ignorantes e egoístas”), Edmund Spenser (“Pior é o perigo escondido que o
descrito”), e Loren Eiseley (“Assim como os instintos podem falhar num animal
submetido a mudança nas condições ambientais, as crenças culturais do homem
podem ser inadequadas para enfrentar uma nova situação”). Vollmann anseia por
provar que Buda, Spenser e Eiseley estão errados e submete questões-relâmpago a
todos os executivos do setor que encontra; mas, fora do Japão, quase ninguém em
posição de autoridade concorda em comentar.
A maioria
das longas entrevistas que dominam Ideologias de
Carbonosão, assim, realizadas com homens que trabalham em cavernas ou cavas
para produzir a energia que desperdiçamos. Se “nada é mais medonho que ver a
ignorância em ação” (Goethe), esses encontros são um pesadelo desperto.
Trabalhadores de refinaria de petróleo no México, mineiros de carvão em
Bangladesh, e operadores de fracking no Colorado estão unidos em sua grande
apreensão pelos danos ambientais que seu trabalho causa, para não mencionar os
fatos básicos das mudanças climáticas e suas ramificações. “A maioria de suas
respostas foram calmas e brandas”, relata Vollmann, embora isso não o impeça de
registrá-las longamente, quase textualmente. Às vezes suas perguntas provocam
uma joia de lirismo acidental, como quando o trabalhador metalúrgico indiano de
uma companhia petrolífera dos Emirados Árabes Unidos, diante da pergunta sobre
sua opinião a respeito das mudanças climáticas, responde: “Agora um pouquinho
bom; mas no futuro, muito perigo”. Melhor, impossível.
Vollmann
não culpa o metalúrgico imigrante por sua complacência ou ignorância, é claro.
Culpa a si mesmo – frequente e profusamente. Parece deliciar-se especialmente em
quantificar, em cuidadosos detalhes, a energia que queima em atividades como
escrever um rascunho de Ideologias de Carbono, dobrar a
esquina de seu hotel em Tóquio para comprar uma bandeja de tonkatsu numa loja de
conveniência e fazer um milkshake para sua filha. Essas passagens são tão
instrutivas quanto tediosas. Elas dramatizam não só a obstinação de nossa
dependência de combustíveis fósseis, mas a impossibilidade de compreender de
verdade nossa própria culpa pelo destino do planeta. Com que frequência você
para pra pensar sobre a quantidade de carvão queimado cada vez que pega um
elevador, carrega seu telefone ou usa seu liquidificador? Mesmo atos
extravagantes de autonegação são impotentes diante de consumo tão perdulário.
Vollmann compara nossos mais ambiciosos esforços para conservar energia a alguém
que faz dieta e continua comendo sua dose diária de doces e sorvetes … apesar do
louvável fato de ter comido brócolis no almoço da quinta-feira
passada.
A fome
global por doces é mais voraz a cada ano que passa. Quaisquer que sejam as
economias de bom samaritano que possamos fazer, melhorando a infraestrutura ou
pedalando para o trabalho, elas serão superadas pela ampliação do sistema de
consumo nas próximas décadas. Cerca de um terço da população humana cozinha suas
refeições com biomassa – madeira, carvão, restos agrícolas e esterco animal.
Quase um bilhão de pessoas não têm acesso à eletricidade. Não será preciso que
toda a Índia adote “o modo de vida norte-americano” para provocar aumentos
gigantescos nas emissões globais. A ascensão da Índia ao modo de vida da Namíbia
será suficiente.
Os problema
da demanda, do crescimento, da complexidade, do custo-benefício, da indústria; o
problema político, o do atraso geracional, da negação – Vollmann cataloga
escrupulosamente todos os principais problemas não resolvidos que contribuem
para o colosso das mudanças climáticas. “Qualquer ‘solução’ que eu tivesse
proposto em 2017”, escreve, “teria sido adiada até que os oceanos subissem mais
dois centímetros!” (O título do capítulo final, “Um raio de esperança”, deve ser
lido sarcasticamente). Nem os seis anos de viagens pelo mundo tabulando dados e
entrevistando especialistas mudaram qualquer aspecto essencial do seu pensamento
sobre o assunto. O leitor que começa a ler Ideologias de
Carbono sem esperança irá terminá-lo sem esperança. Também o
leitor esperançoso.
Mas há
outros tipos de leitores – aqueles que não buscam conselhos ou encorajamento ou
conforto. Aqueles que estão fartos de cruzadas de desonestidade baseadas em
otimismo. Aqueles que procuram entender a natureza humana e a si mesmos. Porque
o verdadeiro assunto de Vollmann é a natureza humana – e é o que deve ser. A
história das mudanças climáticas depende do comportamento humano, não da
geofísica. Vollmann procura entender como “pudemos não apenas sustentar, mas
acelerar o aumento dos níveis de carbono atmosférico, ao mesmo tempo em que
expressamos confusão, impotência e ressentimento”. Por que assumimos riscos tão
insanos? Não poderíamos ter nos comportado de nenhum outro modo? Podemos nos
comportar de algum outro modo? Se não podemos, a que conclusões podemos chegar
sobre nossas vidas e nosso futuro? Vollmann admite que até mesmo ele esquivou-se
completamente de compreender os danos que causamos. “Nunca me odiei
suficientemente para permitir a punição do pleno entendimento”, escreve ele.
“Como poderia? Ninguém poderia.” Ele está certo, embora livros como
o Ideologias de Carbono nos aproximem
disso.
A atmosfera
do planeta mudará, mas não a natureza humana. O insuficiente desejo de Vollmann
é que os leitores futuros compreendam que teriam cometido os mesmos erros que
cometemos. Isso pode parecer uma humilde ambição para um projeto dessa
amplitude, mas só se você toma Ideologias de
Carbono, erroneamente, como um trabalho de ativismo. O projeto
de Vollmann não é absolutamente tão convencional. Sua “carta ao futuro” é uma
mensagem de suicídio. Ele não busca uma intervenção – apenas aceitação. Se não o
perdão, pelo menos aceitação.
Por Nathaniel Rich | Tradução: Inês Castilho
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