terça-feira, 4 de setembro de 2018

Física e filosofia

Pra que ama física como eu e reconhece sua raiz inseparável da filosofia (afinal, em alguns países ainda existe a disciplina da filosofia natural, que, aliás, Marcelo Gleiser é professor), uma bela obra.

A Filosofia da Física de Lawrence Sklar.

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Não tenho nenhum ganho financeiro nem direto nem indireto
o que invalida a hipótese de pirataria, e no mais,  a divulgação livre
de conhecimento só é impedida por crápulas amorais e desprezíveis.

Pitaco retirado de Philosophy of Physics, de Lawrence Sklar (Oxford University Press, 1992):

Filosofia da física e filosofia em geral

Lawrence Sklar
Tradução de Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus
Pode ser útil explicar por que razão o estudo dos fundamentos das teorias físicas e dos seus aspectos filosóficos é útil para os filósofos que não estejam especialmente preocupados com a natureza da física. Gostaria de sugerir que os problemas investigados pelos filósofos da física e os métodos que usam para abordar esses problemas podem também trazer alguma luz às questões filosóficas mais gerais.

Os filósofos da ciência estão interessados em questões como a natureza das teorias científicas, saber como estas teorias explicam os fenômenos do mundo, quais são as suas bases empíricas e inferenciais, e como esses dados empíricos podem ser vistos como algo que apoia ou desencoraja a crença numa hipótese. Podemos ganhar em perspicácia ao abordar estes problemas mais gerais no contexto de teorias específicas da física contemporânea. O vasto alcance das teorias e a sua natureza altamente explícita proporcionam um contexto onde muitos problemas da filosofia da ciência geral, que de outro modo seriam bastante vagos, se tornam mais “fixos” quando concentramos a atenção nessas teorias físicas específicas.
Como essas teorias apresentam um elevado grau de formalização, o lugar nelas ocupado por conceitos cruciais encontra-se estabelecido de uma maneira simples e clara. Questões sobre o significado de conceitos cruciais, sobre a sua eliminabilidade ou irredutibilidade, sobre as suas relações definicionais, etc., ficam assim sujeitas a um exame rigoroso. É mais difícil conduzir esse exame em relação a conceitos mais “vagos” de ciências menos bem formalizadas. Como veremos também, a relação entre a estrutura teórica e os fatos observacionais a partir dos quais esta é inferida é particularmente clara em muitos casos da física formal. Nas teorias sobre o espaço e o tempo, por exemplo, o próprio contexto da teorização científica pressupõe noções bastante definidas sobre o que pode contar como “fatos acessíveis a uma inspeção observacional direta”, que deverão fornecer toda a base empírica da teoria. Deste modo, questões como a de saber se a totalidade desses fatos poderá selecionar apenas uma alternativa teórica viável, apoiando-a mais do que a todos os seus rivais, são tratadas de uma maneira esclarecedora, maneira essa que não é possível no contexto geral da ciência. Neste último contexto, não existe uma noção clara dos limites da observabilidade nem uma delimitação clara da classe das alternativas teóricas possíveis a ter em consideração. Se explorarmos, no contexto das teorias fundamentais da física, problemas como o da eliminabilidade ou não eliminabilidade dos conceitos teóricos, ou o de saber até que ponto os fatos observacionais impõem limites às escolhas teóricas, teremos uma maneira de lidar com estes problemas metodológicos gerais: olhamos para casos específicos que dão uma clareza especial às questões filosóficas. As ideias adquiridas nesta área mais formalizável e delimitada podem beneficiar aqueles que se ocupam de problemas mais gerais.
Estas considerações podem de algum modo ser generalizadas. Os filósofos interessados nos problemas gerais da metafísica, epistemologia e filosofia da linguagem descobrirão que abordar questões desses domínios, tal como são exemplificadas em casos particulares e concretos da teoria física, lançará luz sobre as maneiras apropriadas de lidar com questões gerais. Não podemos progredir muito na compreensão das estruturas específicas das teorias físicas parciais sem usar os recursos fornecidos por aqueles que abordam os problemas mais gerais e fundamentais da filosofia. Além disso, não podemos progredir decisivamente nessas áreas mais gerais sem ver como os métodos e soluções gerais se comportam quando se aplicam a casos específicos. E os casos específicos dos fundamentos filosóficos das teorias físicas fundamentais são, também aqui, bastante apropriados para testar afirmações filosóficas gerais.
Devemos dar um pouco de atenção a um último assunto relacionado com este. Encontramos frequentemente na bibliografia sobre o tema afirmações muito ousadas segundo as quais a física contemporânea resolveu conclusiva e decisivamente debates filosóficos muito antigos. “A mecânica quântica refuta a tese de que todos os acontecimentos têm uma causa” é um exemplo frequente. Por vezes, surpreendentemente, ambos os lados de um debate filosófico afirmam que uma teoria resolve um problema a seu favor. Assim, tem-se defendido que a teoria da relatividade geral resolve decisivamente o problema da natureza do espaço; mas há quem defenda que esta teoria refuta o substantivismo, enquanto outros sustentam que resolve o debate a favor dessa doutrina! Estas afirmações ousadas e injustificadas são enganadoras, pois os problemas são complexos e os argumentos são por vezes frustrantes na sua subtileza e opacidade. Nestas circunstâncias, as pretensões a uma vitória decisiva de qualquer tipo devem ser encaradas pelo menos com algum cepticismo.
Temos de ter um cuidado especial em relação às conclusões filosóficas derivadas de resultados da física. Por analogia com o princípio GIGO das ciências da computação (garbage in, garbage out — “entra lixo, sai lixo”), chamaremos a este o princípio MIMO: metaphysics in, metaphysics out — “entra metafísica, sai metafísica”. Não há dúvida que qualquer tese filosófica deve ser reconciliada com os melhores resultados disponíveis da ciência física, nem tão pouco que o progresso da ciência tem produzido um antídoto útil para muito dogmatismo filosófico, mas ao considerar o que a física nos diz sobre questões filosóficas devemos ter sempre o cuidado de perguntar se a própria teoria física incorpora pressupostos filosóficos. Se descobrirmos que esses pressupostos foram incorporados na própria teoria, devemos estar preparados para examinar cuidadosamente se essa maneira de a apresentar é a única maneira de acomodar os seus resultados científicos, ou se poderão haver outros pressupostos que nos levariam a derivar conclusões filosóficas bastante diferentes, caso a teoria os incorporasse.

Objetivo e estrutura deste livro

Para terminar, vou apresentar algumas considerações sobre o objetivo e a estrutura deste livro. A investigação cuidada e sistemática de qualquer um dos grandes problemas da filosofia da física é uma tarefa demorada e difícil. Um domínio dos conteúdos das teorias fundamentais da física contemporânea requer um estudo prévio de um corpo de matemática vasto e difícil, já que as teorias se formulam frequentemente na linguagem poderosa e abstrata da matemática contemporânea. À formação matemática acresce ainda o estudo dos elementos específicos da física. Além de tudo isto, a investigação filosófica requer uma formação firme em muitos aspectos da filosofia analítica contemporânea: na metafísica, na epistemologia e na filosofia da linguagem.

Tentar fazer inteira justiça a qualquer um dos problemas centrais da filosofia da física numa obra introdutória deste tipo está, obviamente, fora de questão. O objetivo é antes o de proporcionar ao leitor um mapa das áreas de problemas centrais deste domínio. Este livro centra-se naquelas questões que, do meu ponto de vista, se apresentam como as mais importantes da filosofia da física. Muitos outros tópicos interessantes quase não serão considerados, e alguns não serão mesmo abordados, com o objetivo de dirigir a atenção tanto quanto possível para as questões mais cruciais e centrais.

Relativamente aos tópicos abrangidos, ofereço um esboço ou sinopse dos aspectos fundamentais das teorias físicas que estão em interação mais profunda com a filosofia. A minha esperança é oferecer uma abordagem dos problemas suficientemente concisa e clara de modo a orientar o leitor interessado pelos caminhos, por vezes labirínticos, dos debates centrais. Os capítulos 2, 3, e 4 são complementados por um guia bibliográfico anotado. O leitor interessado em seguir com algum pormenor os temas esboçados no texto encontrará nessas seções de referências um guia para os materiais de formação básica em matemática, física e filosofia, assim como um guia para as discussões contemporâneas mais importantes sobre o problema em causa. Não se pretende que as seções de referências sejam um levantamento exaustivo da bibliografia sobre qualquer dos temas considerados (uma bibliografia por vezes muito extensa), mas antes um guia seletivo dos materiais mais úteis para conduzir o leitor, de um modo sistemático, mais longe.

Embora tenha tentado incluir nas seções de referências materiais acessíveis a quem não tem uma vasta formação em matemática e física teórica, não excluí aqueles cuja compreensão requer uma formação nessas áreas. O material que exige uma formação bastante modesta desse tipo (ao nível intermédio de uma licenciatura, digamos) está assinalado com (*). O material que exige uma familiarização mais vasta com os métodos e conceitos técnicos está assinalado com (**).

As três áreas principais que vamos explorar neste livro são a do espaço e do tempo, a das teorias probabilísticas e estatísticas do tipo “clássico” e a da mecânica quântica. Isto vai permitir-nos examinar muitas das actuais áreas de problemas mais enigmáticas e fundamentais da filosofia da física. Outra área principal só será considerada casualmente, embora seja responsável pela introdução de muitos problemas extremamente interessantes que só em parte têm sido explorados. Trata-se da teoria geral da matéria e da sua constituição, tal como é descrita pela física contemporânea. Questões que surgem quando se postula o campo como um elemento básico do mundo, ou que emergem de problemas da teoria da constituição da matéria, ou dos microconstituintes da hierarquia que nos conduz das moléculas e dos átomos às partículas elementares (e talvez mais além), ou da teoria fundamental sobre as próprias partículas elementares, só serão focados de passagem quando lidarmos com as três áreas de problemas centrais acima indicadas.

Lawrence Sklar

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