A Filosofia da Física de Lawrence Sklar.
Não tenho nenhum ganho financeiro nem direto nem indireto
o que invalida a hipótese de pirataria, e no mais, a divulgação livre
de conhecimento só é impedida por crápulas amorais e desprezíveis.
Pitaco retirado de Philosophy of Physics, de Lawrence Sklar (Oxford University Press, 1992):
Filosofia da física e filosofia em geral
Lawrence Sklar
Tradução de Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus
Pode ser útil explicar por que razão o estudo dos fundamentos das
teorias físicas e dos seus aspectos filosóficos é útil para os
filósofos que não estejam especialmente preocupados com a natureza da
física. Gostaria de sugerir que os problemas investigados pelos
filósofos da física e os métodos que usam para abordar esses problemas
podem também trazer alguma luz às questões filosóficas mais gerais.
Os filósofos da ciência estão interessados em questões como a
natureza das teorias científicas, saber como estas teorias explicam os fenômenos do mundo, quais são as suas bases empíricas e inferenciais, e
como esses dados empíricos podem ser vistos como algo que apoia ou
desencoraja a crença numa hipótese. Podemos ganhar em perspicácia ao
abordar estes problemas mais gerais no contexto de teorias específicas
da física contemporânea. O vasto alcance das teorias e a sua natureza
altamente explícita proporcionam um contexto onde muitos problemas da
filosofia da ciência geral, que de outro modo seriam bastante vagos, se
tornam mais “fixos” quando concentramos a atenção nessas teorias físicas
específicas.
Como essas teorias apresentam um elevado grau de formalização, o
lugar nelas ocupado por conceitos cruciais encontra-se estabelecido de
uma maneira simples e clara. Questões sobre o significado de conceitos
cruciais, sobre a sua eliminabilidade ou irredutibilidade, sobre as suas
relações definicionais, etc., ficam assim sujeitas a um exame rigoroso.
É mais difícil conduzir esse exame em relação a conceitos mais “vagos”
de ciências menos bem formalizadas. Como veremos também, a relação entre
a estrutura teórica e os fatos observacionais a partir dos quais esta é
inferida é particularmente clara em muitos casos da física formal. Nas
teorias sobre o espaço e o tempo, por exemplo, o próprio contexto da
teorização científica pressupõe noções bastante definidas sobre o que
pode contar como “fatos acessíveis a uma inspeção observacional direta”, que deverão fornecer toda a base empírica da teoria. Deste
modo, questões como a de saber se a totalidade desses fatos poderá selecionar apenas uma alternativa teórica viável, apoiando-a mais do
que a todos os seus rivais, são tratadas de uma maneira esclarecedora,
maneira essa que não é possível no contexto geral da ciência. Neste
último contexto, não existe uma noção clara dos limites da
observabilidade nem uma delimitação clara da classe das alternativas
teóricas possíveis a ter em consideração. Se explorarmos, no contexto
das teorias fundamentais da física, problemas como o da eliminabilidade
ou não eliminabilidade dos conceitos teóricos, ou o de saber até que
ponto os fatos observacionais impõem limites às escolhas teóricas,
teremos uma maneira de lidar com estes problemas metodológicos gerais:
olhamos para casos específicos que dão uma clareza especial às questões
filosóficas. As ideias adquiridas nesta área mais formalizável e
delimitada podem beneficiar aqueles que se ocupam de problemas mais
gerais.
Estas considerações podem de algum modo ser generalizadas. Os
filósofos interessados nos problemas gerais da metafísica, epistemologia
e filosofia da linguagem descobrirão que abordar questões desses
domínios, tal como são exemplificadas em casos particulares e concretos
da teoria física, lançará luz sobre as maneiras apropriadas de lidar com
questões gerais. Não podemos progredir muito na compreensão das
estruturas específicas das teorias físicas parciais sem usar os recursos
fornecidos por aqueles que abordam os problemas mais gerais e
fundamentais da filosofia. Além disso, não podemos progredir
decisivamente nessas áreas mais gerais sem ver como os métodos e
soluções gerais se comportam quando se aplicam a casos específicos. E os
casos específicos dos fundamentos filosóficos das teorias físicas
fundamentais são, também aqui, bastante apropriados para testar
afirmações filosóficas gerais.
Devemos dar um pouco de atenção a um último assunto relacionado
com este. Encontramos frequentemente na bibliografia sobre o tema
afirmações muito ousadas segundo as quais a física contemporânea
resolveu conclusiva e decisivamente debates filosóficos muito antigos.
“A mecânica quântica refuta a tese de que todos os acontecimentos têm
uma causa” é um exemplo frequente. Por vezes, surpreendentemente, ambos
os lados de um debate filosófico afirmam que uma teoria resolve um
problema a seu favor. Assim, tem-se defendido que a teoria da
relatividade geral resolve decisivamente o problema da natureza do
espaço; mas há quem defenda que esta teoria refuta o substantivismo,
enquanto outros sustentam que resolve o debate a favor dessa doutrina!
Estas afirmações ousadas e injustificadas são enganadoras, pois os
problemas são complexos e os argumentos são por vezes frustrantes na sua
subtileza e opacidade. Nestas circunstâncias, as pretensões a uma
vitória decisiva de qualquer tipo devem ser encaradas pelo menos com
algum cepticismo.
Temos de ter um cuidado especial em relação às conclusões
filosóficas derivadas de resultados da física. Por analogia com o
princípio GIGO das ciências da computação (garbage in, garbage out — “entra lixo, sai lixo”), chamaremos a este o princípio MIMO: metaphysics in, metaphysics out
— “entra metafísica, sai metafísica”. Não há dúvida que qualquer tese
filosófica deve ser reconciliada com os melhores resultados disponíveis
da ciência física, nem tão pouco que o progresso da ciência tem
produzido um antídoto útil para muito dogmatismo filosófico, mas ao
considerar o que a física nos diz sobre questões filosóficas devemos ter
sempre o cuidado de perguntar se a própria teoria física incorpora
pressupostos filosóficos. Se descobrirmos que esses pressupostos foram
incorporados na própria teoria, devemos estar preparados para examinar
cuidadosamente se essa maneira de a apresentar é a única maneira de
acomodar os seus resultados científicos, ou se poderão haver outros
pressupostos que nos levariam a derivar conclusões filosóficas bastante
diferentes, caso a teoria os incorporasse.
Objetivo e estrutura deste livro
Para terminar, vou apresentar algumas considerações sobre o objetivo e a estrutura deste livro. A investigação cuidada e
sistemática de qualquer um dos grandes problemas da filosofia da física é
uma tarefa demorada e difícil. Um domínio dos conteúdos das teorias
fundamentais da física contemporânea requer um estudo prévio de um corpo
de matemática vasto e difícil, já que as teorias se formulam
frequentemente na linguagem poderosa e abstrata da matemática
contemporânea. À formação matemática acresce ainda o estudo dos
elementos específicos da física. Além de tudo isto, a investigação
filosófica requer uma formação firme em muitos aspectos da filosofia
analítica contemporânea: na metafísica, na epistemologia e na filosofia
da linguagem.
Tentar fazer inteira justiça a qualquer um dos problemas centrais
da filosofia da física numa obra introdutória deste tipo está,
obviamente, fora de questão. O objetivo é antes o de proporcionar ao
leitor um mapa das áreas de problemas centrais deste domínio. Este livro
centra-se naquelas questões que, do meu ponto de vista, se apresentam
como as mais importantes da filosofia da física. Muitos outros tópicos
interessantes quase não serão considerados, e alguns não serão mesmo
abordados, com o objetivo de dirigir a atenção tanto quanto possível
para as questões mais cruciais e centrais.
Relativamente aos tópicos abrangidos, ofereço um esboço ou
sinopse dos aspectos fundamentais das teorias físicas que estão em interação mais profunda com a filosofia. A minha esperança é oferecer
uma abordagem dos problemas suficientemente concisa e clara de modo a
orientar o leitor interessado pelos caminhos, por vezes labirínticos,
dos debates centrais. Os capítulos 2, 3, e 4 são complementados por um
guia bibliográfico anotado. O leitor interessado em seguir com algum
pormenor os temas esboçados no texto encontrará nessas seções de
referências um guia para os materiais de formação básica em matemática,
física e filosofia, assim como um guia para as discussões contemporâneas
mais importantes sobre o problema em causa. Não se pretende que as
seções de referências sejam um levantamento exaustivo da bibliografia
sobre qualquer dos temas considerados (uma bibliografia por vezes muito
extensa), mas antes um guia seletivo dos materiais mais úteis para
conduzir o leitor, de um modo sistemático, mais longe.
Embora tenha tentado incluir nas seções de referências materiais
acessíveis a quem não tem uma vasta formação em matemática e física
teórica, não excluí aqueles cuja compreensão requer uma formação nessas
áreas. O material que exige uma formação bastante modesta desse tipo (ao
nível intermédio de uma licenciatura, digamos) está assinalado com (*).
O material que exige uma familiarização mais vasta com os métodos e
conceitos técnicos está assinalado com (**).
As três áreas principais que vamos explorar neste livro são a do
espaço e do tempo, a das teorias probabilísticas e estatísticas do tipo
“clássico” e a da mecânica quântica. Isto vai permitir-nos examinar
muitas das actuais áreas de problemas mais enigmáticas e fundamentais da
filosofia da física. Outra área principal só será considerada
casualmente, embora seja responsável pela introdução de muitos problemas
extremamente interessantes que só em parte têm sido explorados.
Trata-se da teoria geral da matéria e da sua constituição, tal como é
descrita pela física contemporânea. Questões que surgem quando se
postula o campo como um elemento básico do mundo, ou que emergem de
problemas da teoria da constituição da matéria, ou dos
microconstituintes da hierarquia que nos conduz das moléculas e dos
átomos às partículas elementares (e talvez mais além), ou da teoria
fundamental sobre as próprias partículas elementares, só serão focados
de passagem quando lidarmos com as três áreas de problemas centrais
acima indicadas.
Lawrence Sklar
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