domingo, 26 de março de 2017

Ah a hipocrisia... e a ignorância...

Essas últimas semanas recebi umas imagens via whatsapp justamente do meu "chefe" (cliente, mas é praticamente a mesma coisa) que nunca me manda bobagens desse tipo.


Conhecendo-o, imaginei o tipo de manifestação que seria...

Interessante como essas pessoas (e 99% das demais) como nos lembra bem o prof Karnal, sempre veem a corrupção dos outros. É aquela máxima da corrupção ser como a salsinha no dente: você só vê a dos outros.

O que se denomina como corrupção atualmente, nada mais é do que uma das práticas contumazes de todo o tipo de imoralidade que justamente esses ultraliberais (ou neoliberais, como queiram) apregoam, ou seja, pelo lucro/acúmulo tudo é válido.

Meu "chefe" pratica margens de lucro da ordem de 168%, assim como todo o tipo de manobra fiscal (legal ou não) para pagar menos impostos e "combinar procedimentos" com os concorrentes. Devemos sempre lembrar que os "concorrentes" são os amigos da mesma classe social, logo, sempre há um acordo de "cavalheiros" a cerca de certas práticas.

Se você pensou em "mas o mercado é que faz o preço" ou "todos são livres para escolher outro fornecedor", eu só posso imaginar que você ou é muito ignorante, crédulo ou é um deles (desses "corretos homens de bem")... o comum é que de uma maneira ou de outra seja um pouco de todas as opções.



Os liberais (lembro sempre que Adam Smith era professor de moral e sua obra mais conhecida - A riqueza das nações - foi, segundo ele mesmo, algo que nunca deveria ser lida sem a sua outra obra, Os princípios da moralidade humana) usavam a moral como limite do que seria justo e descente.

O ultraliberalismo necessitou que a moral fosse solapada para que houvesse liberdade total para qualquer tipo de prática econômica (por isso esse discurso insano de estado mínimo).
Apenas como exemplo, deixe-os lembrar que na década de 40 e 50, quando o CEO da GM elevou seus rendimentos acima do que se considerava razoável ele teve que depor no congresso norte americano.

Não, não existia e nem existe nenhuma lei que controle isso, porém existia a moral.

TODOS nós somos livres até certo ponto e nossas atitudes esbarram no limite da razoabilidade em nome do bem comum e da justiça. É a premissa básica do "o que EU NÃO DEVO FAZER ainda que me seja permitido e o que EU DEVO FAZER ainda que eu não seja obrigado e não ganhe nada em troca".

Hoje porém um CEO de uma Wallmart por exemplo, ganha muitas milhares de vezes o que o mais baixo cargo da mesma corporação (fator muuuito maior do que o caso da GM no meio do século XX), sem nenhuma justificativa funcional e muito menos ética (vide, por exemplo, Krugman - A moral de um liberal).

Por que uma passeata de classe média dessas é uma hipocrisia e defender tudo isso é um tiro no pé?

Se a moral é solapada da sociedade, ela não se restringe a um contexto, a ideologia dessa ética (ou falta dela) é incontrolável e contamina toda a malha social.

É uma dona de casa classe média que responde a cerca do valor pago a sua 'empregada' (aliás, resquício descarado do ideal escravagista): "é o que pagam por aqui".

É o patrãozinho que sabe que não é possível alguém manter uma família com "o salário legal da categoria" mas paga assim mesmo.

É a "comissão" ou "sistema de recompensas" que alguns profissionais recebem e aceitam quando indicam certo produto.

Enfim, é toda vez que não nos perguntamos a cerca de certa ação e depositamos uma questão moral em um grupo, classe ou pior ainda, numa coisa completamente sem sentido como o "mercado". 

Dentro desse imbróglio, nesse mesmo relacionamento 'prestador de serviço/cliente' que eu iniciei este post, ao recomendar a compra de um servidor e alguns equipamentos da Dell (foi uma questão de custo benefício momentânea, não tenho nenhuma preferência por marca) para esse meu cliente, o pessoal da Dell automaticamente entrou em contato comigo para oferecer um "programa de recompensas" aos consultores que indicam a Dell a seus clientes...

Na primeira ligação eu respondi ao cidadão que eu não aceitava propina.

Um silêncio constrangedor momentâneo pairou na ligação.
Claro que rapidamente, o dito cujo me disse que não era propina e sim um programa de recompensas que os consultores podem acumular e usar em suas aquisições de equipamentos Dell.

Eu apenas respondi que "chame do que quiser, isso é propina e não me interessa".

Alguns dias depois recebi um "vale de R$1000" para eu usar de desconto para adquirir produtos Dell.
Vale este que eu joguei fora em nome da minha consciência e de tudo o que acredito como decência humana.

Este é o ponto crucial,
O que ganhamos (ou seja lá o nome que certas negociatas recebem) muitas vezes não passa de propina, corrupção, amoralidade e indecência, coisa que abominamos nos outros, porém, numa sociedade amoral, somos indulgentes em nosso auto julgamento.

E nesta "liberdade" viva a JBS, BRF e TODAS as grandes corporações cujo objetivo é único: lucro.

Inúmeros sociólogos e filósofos já nos alertavam e ainda alertam sobre o risco do corrompimento completo da malha social quando delegamos a nossa moral à lei (ou à técnica, o que no fundo é a lei) ou algo quase surreal como "o mercado" (dilema muito bem apresentado no sucinto e direto O capitalismo é moral de André Comte-Sponville).

O resultado, bem, está cada vez mais nos engolindo.

Quando esse mesmo "sumiço da moral" ocorre numa classe mais baixa e com menor (ainda) grau de educação (formal e/ou não formal) aliada a sua desumanização completa, nada me estranha que um indivíduo se ache no "direito de eliminar outra coisa que o atrapalha para alcançar seus objetivos".










"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis







quinta-feira, 9 de março de 2017

Heidegger, en passant

Martin Heidegger, o grande filósofo do século XX que vivia como um camponês, dizia que os trabalhadores de comunidades rurais tem uma "compreensão instintiva" sobre sua própria humanidade e que os habitantes de grandes centros urbanos tendem a perder o contato com sua própria individualidade.
Forçados a se identificar por padrões de massa, sofrem fortes ansiedades, vivendo, nos termos de Heidegger, vidas "inautênticas".


"Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no Oriente; quando tempo significar apenas rapidez online; quando o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os povos, quando um desportista ou artista de mercado valer como grande homem de um povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, – então, justamente então — reviverão como fantasma as perguntas: para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência. Essa constatação nada tem a ver com pessimismo cultural, nem tampouco, com otimismo… O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornado ridículas." – Martin Heidegger, (1889-1976), em Introdução à Metafísica







PS: sua ligação com o partido nazista durante a ascensão de Hitler não retira os méritos de sua filosofia, porém nos mostra mais uma vez que a ambição pessoal, xenofobia e confusões politicas podem tornar nebulosos os mais brilhantes cérebros.
Curiosamente Heidegger teve um affair com a filósofa judia Hanna Arendt...