quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Ah o verão!

Morar em uma cidade litorânea pequena é muito bom.
Exceto no fim de ano.

Passado a histeria de um dia como outro qualquer marcado como último dia de um ano de um calendário humano sem sentido, fico com pena da ressaca mental desses desequilibrados: promessas vazias, o retorno a uma realidade cruel, 364 outros dias sendo massacrado e explorado, fotos de hienas sorridentes nas redes (in)sociais, dívidas das quinquilharias inúteis acumuladas e tudo regado a uma esperança desesperada digna dos tolos.

Sol.
Praia.
Gente suada e barulhenta aglomerada.

Nada como passar trepando e lendo um bom livro no meu quarto com ar condicionado.

Feliz Ano Velho - Contardo Calligaris
Da Folha de São Paulo (1/1/15)

É um clichê, mas continua valendo: os anos passam e pouco muda, salvo o fato de que envelhecemos.
Em geral, não acredito nas datas. E daí que é dia 1º de janeiro? É apenas outro dia, mais um, depois de ontem –que por acaso era 31 de dezembro. É por isso que nunca me lembro dos aniversários, nem mesmo dos meus.

Quanto ao ano que começa hoje, só sei que haverá uma mudança: durante um mês, ao preencher cheques, tenderei a errar a data.
Como sugere o lindo título do livro de Marcelo Rubens Paiva, o ano novo já está velho antes de nascer.

Apesar disso, faço votos e tenho propósitos para o ano novo, como todo o mundo.
Ou seja, pareço acreditar (e apostar) numa renovação que estaria implícita ou especialmente desejável na mudança de data.
Natal, para mim, é uma festa de família restrita, como Páscoa, e já passei o Natal sozinho –gostei. A noite do dia 31 de dezembro, ao contrário, prefiro passá-la em companhia, mesmo que seja a companhia de desconhecidos –numa festa de rua, num bar, numa bagunça qualquer ou (aconteceu comigo uma vez) num trem (à meia-noite, houve festa).

Por que será que, na última hora do ano, prefiro estar em companhia?
Minha hipótese é que, no balanço final do ano que termina, na hora de contar as dificuldades, os erros e as tragédias, a lista na qual penso é, talvez antes de tudo, a dos impasses da vida coletiva.
Certo, vou me lembrar que naquele ano a natureza não foi clemente nem comigo nem com os humanos (tsunamis, incêndios, doenças, seca"¦). Também vou me lembrar de que, no meu pequeno universo íntimo, várias coisas deram errado (sei lá, divorciei, briguei). Mas é na vida coletiva que encontro a maior marca do fracasso.

2014? O surgimento do Estado Islâmico, as decapitações, a intolerância, o ódio contra as mulheres, o racismo, os emigrantes africanos afogados a caminho da Sicília, o separatismo dos russos da Ucrânia, a corrupção endêmica aqui e alhures, os 43 estudantes mexicanos sequestrados e assassinados pelo narcotráfico, as 132 crianças paquistanesas assassinadas pelo Talibã"¦ É isso que me vem, nessa ordem ou em outra.

Na reunião de fim de ano, que seja uma festa ou não, talvez eu queira reafirmar que, contra as aparências, é possível conviver. Na rua, num bar, na casa de um amigo, é como se quisesse celebrar a obstinação com a qual continuamos apostando que a vida em sociedade é possível –apostando que a barbárie não é um destino inevitável. Ou que, se tivermos mesmo que ir à barbárie, será nos agarrando em todos os postes que encontraremos no caminho, resistindo à maré.

É isso, a festa de fim de ano, para mim, é um jeito de celebrar a possibilidade de conviver. Pode ser assistindo a uma peça ou a um filme, pode ser num pequeno clube de jazz, pode ser na confusão de Times Square ou da Paulista.
Pode ser também numa igreja: tanto faz que Deus escute ou não, a reza vai valer por juntar os fiéis na vigília.

A minha celebração de AnoNovo, além de uma festinha com amigos no dia 31, será no dia 3, sábado, a partir das 14 horas. Se alguém estiver em Nova York, que apareça.
Na Washington Square (lado sul), há uma igreja, a Judson Memorial Church. A Judson organiza uma leitura em voz alta, do começo ao fim, de "Mal Estar na Civilização", o texto de Freud de 1929.
Entre outros, lerão o texto Elizabeth Rubin (grande repórter de zonas de guerra, esteve no Afeganistão, Chechênia, Paquistão, Iraque, Israel, nos territórios palestinos e por dois anos em Sarajevo, etc.), Simon Critchley (filósofo da ética pósmoderna), Michael Cunningham (o autor de "As Horas") e o rabino Andy Bachman.

A ideia é que o livro de Freud, sombrio e sem ilusões, tentando entender as dificuldades insurmontáveis da vida dos humanos em sociedade, talvez seja o texto que mais possa nos ajudar a resistir contra o pior.
Não sei se Freud acreditava mesmo que fosse possível uma sociedade em que um superego menos intolerante nos deixasse viver com menos culpa, mais prazer e mais tolerância pelo prazer do vizinho.

De qualquer forma, não se trata de concordar com Freud ou discordar dele. O que importa é celebrar, com ele, nossa capacidade, humilde e desesperada, de entender quem somos e talvez de mudar um pouco o rumo de uma história cujo balanço anual não é (nunca) dos melhores.

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