“Agora é Bolsonaro, porra”, disse o aspirante a deputado Rodrigo Amorim na campanha de 2018, segurando a placa com o nome de Marielle. Ao seu lado, o futuro governador Wilson Witzel FOTO_REPRODUÇÃO
No primeiro semestre de 2001, o professor Marcelo Baumann Burgos reuniu 22
alunos do curso de ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro para um estudo sociológico na favela Rio das Pedras, na Zona Oeste da
cidade. Pesou na escolha da comunidade, além de seu tamanho – 40 mil habitantes
na época e 80 mil hoje –, o fato de ser uma das poucas da capital fluminense sem
narcotraficantes. Isso facilitava o trabalho dos pesquisadores e era motivo de
elogios da parte de Burgos – o professor chegou a definir Rio das Pedras como
“um oásis em meio à barbárie”.
“Em uma cidade marcada pelo recrudescimento da violência urbana, […] morar
em uma favela sem ter que conviver com a sombria presença de traficantes
torna-se, compreensivelmente, razão suficiente para aumentar o apego do morador
ao lugar”, escreveu o sociólogo no livro que trouxe o resultado da pesquisa, A
Utopia da Comunidade: Rio das Pedras, uma Favela Carioca, publicado em 2002.
Quando fizeram o trabalho, nem Burgos nem seus alunos perceberam que aquela
sensação de segurança derivava do poder exercido no local por uma nova forma de
organização criminosa que surgia no Rio – os grupos paramilitares.
A favela data de 1969, quando o então governador do estado da Guanabara,
Francisco Negrão de Lima, decidiu desapropriar uma área às margens do rio das
Pedras para abrigar dez famílias de migrantes do Nordeste ameaçadas de expulsão
pelo dono da propriedade. A partir de então, como costuma acontecer em vários
lugares no trágico processo de urbanização do país, a comunidade cresceu
descontroladamente. Nos anos 80 a prefeitura delegou à associação de moradores a
tarefa de organizar a ocupação do espaço. Com isso, acabou fazendo dessa
entidade privada uma extensão do poder público, criando, segundo Burgos, “uma
autoridade paralela”, personalista, “que não foi constituída para gerir bens
públicos para os cidadãos em geral”.
A associação passou a controlar Rio das Pedras com mão de ferro. A fim de
evitar a entrada do tráfico na comunidade e manter a ordem, patrocinou nas
décadas de 80 e 90 um grupo de justiceiros – no qual havia policiais –
encarregado de expulsar ou, em certos casos, matar traficantes e usuários de
drogas. Na virada para o século XXI, esse grupo ganhou proeminência na favela, o
que não deixou de ser notado pelo sociólogo na pesquisa: “Como estamos em
território da cidade informal, o grau de arbítrio desse tipo de segurança
pública é fracamente regulado pelo ordenamento jurídico, estando amplamente
permeável a uma moralidade local, para a qual é legítima a máxima ‘aqui, só quem
faz besteira some’.” Burgos também percebeu atividades econômicas em expansão em
Rio das Pedras, como o transporte por vans e a tevê a cabo, na época com 5 mil
“assinantes”, sem associá-las, porém, ao emergente negócio dos paramilitares,
que já controlavam esses serviços.
O mesmo modelo de organização criminosa, lucrativa, expandiu-se rapidamente
para bairros próximos de Rio das Pedras, tomando áreas do tráfico de drogas.
Formados por policiais e bombeiros, da ativa ou aposentados, esses grupos eram
chamados inicialmente de “polícia mineira” – a expressão tem origem na maneira
truculenta com que policiais de Minas Gerais capturavam criminosos durante
incursões pelo Rio nos anos 60 e 70. Durante um tempo, os paramilitares foram
apontados como responsáveis pela autoproteção das comunidades e não faltaram
políticos que os tratassem com benevolência. “As autodefesas comunitárias são um
problema menor, muito menor, do que o tráfico”, disse em 2006 o então prefeito
do Rio, César Maia, que comparou os paramilitares cariocas às Autodefesas Unidas
da Colômbia, grupo paramilitar que, entre 1997 e 2006, combateu a guerrilha das
Farc e lucrou com o comércio de drogas. Os grupos do Rio, porém, ao fincar
raízes, passaram a extorquir comerciantes e moradores, e rapidamente migraram
para outras frentes econômicas, como a grilagem de terras – a ocupação
irregular, mediante fraude e falsificação de documentos. “No Rio há muitos
títulos de propriedade falsos, decorrentes de um sistema cartorial corrupto. Os
paramilitares usam esse argumento para tirar os donos originais à força”, me
disse a antropóloga Alba Zaluar, que há quatro décadas pesquisa o crime
organizado no Rio de Janeiro.
Vera Araújo trabalha há trinta anos como jornalista e se especializou na
cobertura de temas relacionados à segurança pública no Rio. Em março de 2005,
numa reportagem que publicou no jornal O Globo, mostrou que onze grupos de
paramilitares controlavam 42 favelas na capital, principalmente na Zona Oeste.
Pela primeira vez, o termo “milícia” foi utilizado para identificar esses
agrupamentos de policiais e ex-policiais. A escolha se deu por um motivo
prosaico, me disse a repórter: era uma palavra curta, mais fácil de ser
encaixada no título de uma reportagem de jornal do que o termo
“paramilitares”.
Naquela época, os milicianos de Rio das Pedras eram comandados por Félix
dos Santos Tostes, inspetor da Polícia Civil, que seria morto em fevereiro de
2007 em uma disputa pelo controle da associação de moradores do bairro. No mesmo
mês do assassinato, o então deputado estadual Marcelo Freixo propôs uma Comissão
Parlamentar de Inquérito para investigar as milícias. “Estava no terceiro dia de
mandato e fui motivo de chacota”, recordou o parlamentar do PSOL quando o
encontrei numa tarde de fevereiro em seu apartamento na Zona Sul.
Um ano depois da proposta de Freixo, em 2008, a notícia de que uma
repórter, um fotógrafo e um motorista do jornal O Dia haviam sido torturados por
milicianos na favela do Batan, em Realengo, reacendeu o tema. Pressionados, os
deputados da Assembleia Legislativa do Rio, a Alerj, aprovaram por maioria a
instalação da CPI, presidida por Freixo. Durante cinco meses, a comissão ouviu
47 pessoas, incluindo o vereador Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho, que
havia substituído Félix Tostes como chefe da milícia de Rio das Pedras e era
suspeito de ser o mandante do assassinato do inspetor.
Em depoimento sigiloso, Nadinho decidiu contribuir com a CPI e delatar
outros onze milicianos que agiam na comunidade de Rio das Pedras. Pagaria caro
por isso: foi morto com dez tiros um ano depois, em 2009. A CPI indiciou 226
pessoas, das quais 25 seriam assassinadas nos dez anos seguintes. Desde então,
Freixo, que foi ameaçado de morte por grupos paramilitares, vive sob escolta
policial. “A milícia não é o estado paralelo, é o estado leiloado, porque
transforma o domínio territorial em domínio eleitoral. Por isso elege
representantes e dialoga com o poder”, define o deputado do PSOL, hoje com 51
anos. As milícias não pararam de crescer na cidade. Atualmente, estão presentes
em 88 das 1 018 comunidades do Rio, de acordo com o Ministério Público. Em
vários lugares, transformaram-se em narcomilícias e passaram a disputar o
controle do tráfico de drogas com o crime organizado que supostamente
combatiam.
Marielle Franco esteve com Marcelo Freixo na investigação parlamentar
contra os milicianos. Por nove anos, entre 2007 e 2016, a jovem negra criada no
Complexo da Maré – um conjunto de dezesseis favelas onde moram 130 mil pessoas,
na Zona Norte – foi assessora de Freixo. Ao mesmo tempo que cursava ciências
sociais na PUC-Rio, ela coordenava na Assembleia Legislativa a Comissão de
Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania, presidida pelo deputado. Em 2016,
Marielle decidiu concorrer pela primeira vez a um cargo público. Candidatou-se a
vereadora pelo PSOL e obteve a quinta maior votação na cidade – 46 mil votos, a
maior parte deles oriundos da Zona Sul.
Seu mandato foi marcado pela defesa das mulheres, dos negros e das
minorias, e também por duras críticas à violência policial. “Mais um homicídio
de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. […] Quantos mais vão
precisar morrer para que essa guerra acabe?”, escreveu Marielle no Twitter em 13
de março do ano passado, a respeito da morte de um rapaz na favela do
Jacarezinho. Na noite do dia seguinte, ela própria seria assassinada no Centro
do Rio, aos 38 anos de idade.
O relógio no painel do carro marcava 21h14. Fazia menos de dez minutos que
Marielle, a sua assessora, Fernanda Chaves, e o motorista Anderson Gomes haviam
deixado a Casa das Pretas, na rua dos Inválidos, no Centro da cidade, depois do
debate “Jovens Negras Movendo as Estruturas”, organizado pelo PSOL. “Não sou
livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam
diferentes das minhas”, disse Marielle no encontro, citando a escritora
norte-americana Audre Lorde – negra, feminista e gay, como a vereadora. “Vamos
que vamos, vamos juntas ocupar tudo”, concluiu diante do público de pouco mais
de vinte mulheres. Foi aplaudida, abriu o sorriso grande que lhe era
característico e levantou-se, ajeitando a saia com estampas florais e a blusa
azul-marinho de alças finas. Na saída, uma amiga a convidou para ir a um bar na
Lapa. Marielle disse estar cansada e preferiu ir para casa, na Tijuca.
Habitualmente, ela embarcava ao lado do motorista, mas naquele dia sentou-se
atrás, ao lado da assessora, a bordo de um Agile branco.
Nenhum dos três percebeu, mas, assim que o Agile deixou a rua dos
Inválidos, foi seguido por um Chevrolet Cobalt prata – o veículo com placas
clonadas estava no local desde as sete da noite, quando Marielle chegou à Casa
das Pretas para o debate. No banco traseiro do Cobalt, um homem segurava uma
submetralhadora alemã HK MP5, calibre 9 milímetros, conhecida pela precisão de
seus disparos.
Quando, às 21h20, o carro com a vereadora dobrou a esquina das ruas Joaquim
Palhares e João Paulo I, no bairro do Estácio, ainda no Centro, o Cobalt
emparelhou com o Agile a uma distância de 2 metros. Do vidro aberto do carro
prata, a HK disparou treze tiros entre a porta direita traseira e o fim da
lateral do Agile, exatamente no local onde estava Marielle.
Atingida por quatro balas no lado direito da cabeça – duas próximas à
orelha, uma perto do olho direito e uma rente à boca –, a vereadora morreu
instantaneamente. O motorista Anderson Gomes, que estava na linha de tiro, foi
atingido por três balas nas costas. Soltou um gemido e largou as mãos do
volante. Fernanda Chaves, a única a não ser atingida, abaixou-se rapidamente e
puxou o freio de mão do veículo. Marielle estava com o corpo seguro pelo cinto
de segurança, a cabeça caída para a frente, o sangue escorrendo pela nuca. Havia
onze câmeras públicas de vídeo no trajeto feito pelo carro. Misteriosamente,
cinco tinham sido desligadas, um ou dois dias antes dos assassinatos – uma
delas, a poucos metros da cena do crime, não grava imagens e serve apenas para
contar os veículos que passam pela via.
As mortes de Marielle e de Anderson indignaram os cariocas e o país. Na
tarde do dia 15, cerca de 50 mil pessoas se aglomeraram em frente à Câmara
Municipal para o velório, num ato que misturava dor e protesto. Houve
manifestações populares em dezessete estados naquela noite. O crime foi destaque
na imprensa internacional, ganhando as páginas dos jornais The New York Times,
The Washington Post, The Guardian e Clarín, entre outros. “O Estado, através dos
diversos órgãos competentes, deve garantir uma investigação imediata e
rigorosa”, cobrou a Anistia Internacional. “Não podem restar dúvidas a respeito
do contexto, motivação e autoria do assassinato de Marielle Franco.” Dois dias
após o crime, a assessora Fernanda Chaves deixou o Rio de Janeiro às pressas e,
em seguida, foi com a família para a Espanha. Só retornou ao Brasil quatro meses
depois, em julho do ano passado. Mesmo assim, por segurança, permanece fora do
Rio.
Freixo, que sempre manteve uma relação muito próxima com a vereadora,
afirma que ela não recebeu nenhuma ameaça de morte, inclusive naqueles dias que
precederam o assassinato. “Toda semana, religiosamente, eu tomava um café com a
Marielle. Na terça-feira, 13 de março, véspera do crime, no fim do dia, eu falei
com ela pelo telefone e combinamos de ir à Maré no sábado seguinte. Ela estava
tranquilíssima. Não tinha a menor ideia de que sua vida corria risco.”
A segurança pública do Rio de Janeiro estava sob intervenção federal,
decretada pelo então presidente Michel Temer em fevereiro, um mês antes da morte
de Marielle. Nos dias seguintes ao assassinato, procuradores chegaram a aventar
a hipótese de que o atentado fora um recado aos militares que comandavam a
intervenção. Logo, no entanto, essa hipótese perdeu força. Quando o Exército
saiu do Rio, em dezembro último, foi descartada. Ficou cada vez mais evidente
que o crime era obra de milicianos – e quanto a isso não há mais dúvidas. A
guerra de versões que se trava em torno do caso há doze meses envolve disputas
entre milícias e seus respectivos padrinhos na política carioca. Envolve ainda
disputas surdas entre a Polícia Civil, de um lado, e a Polícia Federal e o
Ministério Público, de outro. Envolve, por fim, divergências entre jornalistas,
sobretudo no jornal O Globo.
Depois de viver uma década no Rio de Janeiro, o delegado Giniton Lages, 44
anos, praticamente perdeu o sotaque caipira. Paulista de Jaú, ele se formou em
direito no interior de São Paulo. Seu sonho era ser promotor de Justiça. Durante
cinco anos prestou concursos públicos para a carreira, sem sucesso. Decidiu
então tentar uma vaga de delegado na Polícia Civil. Passou em concursos da
corporação em Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Escolheu o último
estado. Em 2008, assumiu o distrito policial de Japeri, na Baixada Fluminense, e
de lá foi para a vizinha Belford Roxo.
Em 2010, chegou à Delegacia de Homicídios
(DH) da Baixada, onde atuou por oito anos. Em 17 de março do ano passado, três
dias após a morte de Marielle, Lages assumiu a chefia da DH na capital, com a
missão de elucidar o crime. A Delegacia de Homicídios conta com 10 delegados, 22
peritos, 206 agentes e 48 carros. De cada dez assassinatos ocorridos na capital,
esclarece dois, me disse Lages – duas vezes mais do que a média no estado do
Rio, conforme pesquisa do Monitor da Violência.
“Sem dúvida o caso Marielle é o maior desafio da minha carreira”, afirmou
Lages na sede da DH, em área residencial da Barra da Tijuca, na tarde de 8 de
fevereiro, sexta-feira. De olhos vincados e cabelos bem curtos, exibia no peito
o típico distintivo dos delegados fluminenses, preso por um cordão no pescoço. A
sala ampla onde ele despacha contrasta com o espaço exíguo em que trabalham
outros delegados e escrivães. Na mesa em formato de “L” repousavam dezesseis dos
mais de vinte volumes do inquérito 901-00385/2018, que apura o duplo homicídio.
Lages mantém os documentos sob diligente sigilo. “Nenhum advogado teve acesso.
Qualquer publicidade sobre as investigações pode pôr todo o nosso trabalho a
perder”, justificou.
Conversei com três pessoas que tiveram acesso ao inquérito. Os papéis,
segundo elas, revelam que faltou foco na ação da polícia nas primeiras semanas
de apuração. Lages solicitou à Polícia Militar toda a relação de policiais
lotados no 41º Batalhão, em Acari, Zona Norte, o recordista no estado em mortes
provocadas por policiais – quatro dias antes de morrer, Marielle fez a seguinte
crítica no Twitter: “O que está acontecendo agora em Acari é um absurdo! E
acontece desde sempre! O 41° batalhão da PM é conhecido como Batalhão da morte.
CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos jovens!” No entanto,
nenhum policial daquele destacamento foi formalmente ouvido pela Delegacia de
Homicídios. O delegado também convocou todos os proprietários de automóveis
Cobalt de cor prata na capital a apresentarem seus veículos à polícia – são 7
375 apenas na capital, segundo o Departamento de Trânsito. Lages afirmou que foi
feita vistoria em todos eles. O veículo utilizado no crime, porém, nunca foi
encontrado.
Na noite de 21 de março, quarta-feira, a jornalista Vera Araújo, d’O Globo,
decidiu ir até o cruzamento das ruas Joaquim Palhares e João Paulo I, onde tinha
ocorrido o crime uma semana antes. Seu objetivo era localizar alguém que
habitualmente passasse por aquele local sempre às quartas-feiras, entre nove e
nove e meia da noite. Foi assim que ela encontrou duas testemunhas, que não
tinham sido ouvidas pela polícia. Uma delas era um morador de rua, que
presenciou o crime a uma distância de apenas 10 metros. “Foi tudo muito rápido.
O carro dela [Marielle] quase subiu na calçada. O veículo do assassino imprensou
o carro branco [onde estava a vereadora]. O homem que deu os tiros estava
sentado no banco de trás e era negro. Eu vi o braço dele quando apontou a arma,
que parecia ter silenciador”, disse o homem – para protegê-lo de uma possível
retaliação, a jornalista não o identificou na reportagem.
Uma mulher também viu a cena, embora de uma distância maior. Tanto ela
quanto o morador de rua contaram à repórter que PMs do 4º Batalhão, em São
Cristóvão, chegaram minutos após o crime e pediram para que todos se afastassem
do local, sem se interessar por possíveis testemunhas. Antes de publicar a
reportagem, Araújo telefonou para o então chefe da Polícia Civil do Rio, Rivaldo
Barbosa. “Ele nem deu bola. Depois que publicamos a história, ficou irritado,
dizendo que eu expus aquelas pessoas.” A mulher encontrada por Araújo só foi
ouvida duas semanas depois pela polícia, que não conseguiu localizar o morador
de rua.
No dia seguinte ao crime, 15 de março, o então ministro da Segurança
Pública, Raul Jungmann, e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge,
desembarcaram no Rio. A dupla se reuniu à tarde na Cidade da Polícia, no bairro
do Jacaré, Zona Norte, com Rivaldo Barbosa, o general do Exército Walter Souza
Braga Netto, na época interventor na segurança pública do estado, e o
procurador-geral de Justiça no Rio, José Eduardo Gussem. Na reunião, Dodge
anunciou que iria instaurar uma apuração preliminar do caso no Ministério
Público Federal (MPF). Embasaria assim um possível pedido ao Superior Tribunal
de Justiça para que a investigação fosse feita pela Polícia Federal e pelo MPF,
e não mais pelas autoridades fluminenses. Uma emenda de 2004 à Constituição
Federal prevê a federalização na investigação de crimes quando há “graves
violações aos direitos humanos” e se constata a incapacidade das forças de
segurança estaduais para elucidar o delito. “Certamente a participação da
Polícia Federal é importante nesse episódio”, disse Raquel Dodge em entrevista
coletiva, após a reunião.
Naquele mesmo dia, ela nomeou cinco procuradores do MPF do Rio para
“acompanhar todos os atos referentes às investigações” das mortes de Marielle e
Anderson, com o objetivo de instruir o pedido de federalização das investigações
ao STJ. O grupo de procuradores, entretanto, só teve tempo de solicitar à
Polícia Civil informações sobre a estrutura da Divisão de Homicídios do Rio. Em
21 de março, o procurador-geral Gussem ingressou com um pedido no Conselho
Nacional do Ministério Público para que a apuração dos procuradores federais
fosse suspensa. “O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro vê-se
surpreendido por uma incompreensível, desproporcional e prematura violência
institucional”, argumentou.
O coordenador do grupo nomeado por Dodge, procurador Marcelo de Figueiredo
Freire, rebateu: “Esclareço que não houve nenhuma usurpação da atividade
conferida ao Ministério Público Estadual. Não houve investigação ‘paralela’ dos
fatos.”
Em 3 de abril, foi concedida uma liminar proibindo a atuação dos
procuradores federais no caso até o julgamento do pedido de Gussem. Em 21 de
maio, antes que o caso fosse julgado, Dodge revogou a portaria que designava os
cinco procuradores, desistindo de levar adiante a federalização das apurações.
Recuou, mas não abandonou o caso –procuradores do MPF no Rio seguiram enviando a
ela relatórios detalhados sobre o andamento das investigações.
Um mês após os assassinatos, o repórter Antônio Werneck recebeu na redação
do jornal O Globo o telefonema de uma pessoa que disse haver um grande “furo” à
espera dele na Superintendência da Polícia Federal do Rio. Werneck – que
trabalha no jornal há 29 anos – especializouse, como Vera Araújo, em
investigações na área de segurança pública. Quando o jornalista chegou à PF,
encontrou três delegados federais: Hélio Khristian Cunha de Almeida, conhecido
como HK, Lorenzo Martins Pompílio da Hora e Felício Laterça. HK não tem
currículo que se possa admirar: em 2002, quando trabalhava em Belém, capital do
Pará, foi denunciado pelo MPF por corrupção passiva ao aceitar passagem aérea de
um empresário investigado por corrupção pela própria PF. Quatro anos depois, já
no Rio, HK foi novamente denunciado à Justiça por concussão (extorsão de
dinheiro praticada por funcionário público), ao supostamente forjar um inquérito
por crime previdenciário contra um empresário carioca e exigir dele 5 milhões de
reais para arquivar a investigação. O delegado foi absolvido em primeira
instância, os procuradores recorreram e o TRF da 2ª Região o condenou a dois
anos e meio de prisão por corrupção passiva. Como o crime pelo qual foi
condenado (corrupção) difere daquele pelo qual fora denunciado pelos
procuradores (concussão), HK conseguiu anular a decisão. Ainda não há data para
um novo julgamento – a defesa do delegado garante que vai provar sua
inocência.
A trinca de delegados apresentou o repórter Werneck ao sargento da PM
Rodrigo Jorge Ferreira, que estava ali para fazer uma revelação. Suspeito ele
mesmo de ser um miliciano, Ferreira acusava duas pessoas de terem tramado o
assassinato de Marielle: o vereador Marcello Siciliano, do PHS, e o ex-policial
militar Orlando Oliveira de Araújo, que estava preso desde outubro de 2017,
acusado de comandar uma milícia no bairro de Curicica, na Zona Oeste – daí, seu
apelido: Orlando de Curicica.
Os negócios de Siciliano começaram no final dos anos 90, com a compra e
venda de carros. Depois, ele passou a investir no mercado imobiliário em Vargem
Grande e em terraplanagem no vizinho, Jacarepaguá. Abriu uma boate na Barra e
mergulhou na política: depois de duas candidaturas malsucedidas, conseguiu se
eleger vereador em 2016 com 13,5 mil votos – menos de um terço dos conquistados
por Marielle.
Há fortes indícios do envolvimento do vereador com paramilitares – em
escutas telefônicas autorizadas pela Justiça em outro inquérito da Polícia
Civil, ele conversa com um miliciano e se despede com um “te amo, irmão”. Uma
investigação do Ministério Público constatou que o nome de Siciliano aparece em
mais de oitenta transações imobiliárias em áreas dominadas por paramilitares.
Uma dessas áreas é Vargem Grande, onde assessores de Marielle participaram, em
janeiro de 2018, de uma reunião na associação de moradores de Novo Palmares,
comunidade encravada no bairro, para discutir programas de regularização
fundiária. O objetivo seria combater a grilagem de terras praticada pela milícia
no local.
Diante dos delegados e de Werneck, o sargento Ferreira relatou que Orlando
de Curicica era uma espécie de capataz de Siciliano e ajudava o vereador na
grilagem de terras na Zona Oeste. Por causa das ações comunitárias de Marielle
na região, Siciliano teria ficado irritado com a vereadora. “Ela peitava o
miliciano e o vereador. Os dois [Orlando e Marielle] chegaram a travar uma briga
por meio de associações de moradores da Cidade de Deus e da Vila Sapê”, afirmou
Ferreira. A favela Vila Sapê fica entre os bairros Curicica e Cidade de
Deus.
Ferreira disse ainda ter ouvido os dois tramarem a morte de Marielle em um
restaurante da Zona Oeste, em junho de 2017. “Eu estava numa mesa, a uma
distância de pouco mais de 1 metro dos dois. Eles estavam sentados numa mesa ao
lado. O vereador falou alto: ‘Tem que ver a situação da Marielle. A mulher está
me atrapalhando.’ Depois, bateu forte com a mão na mesa e gritou: ‘Marielle,
piranha do Freixo.’” Um mês antes do atentado – contou o sargento –, Orlando de
Curicica, mesmo preso na penitenciária de Bangu 9, acusado de doze homicídios,
transmitiu a ordem para que o plano de matar a vereadora fosse colocado em
prática por seus subordinados.
Werneck gravou toda a conversa com o PM Ferreira, mas disse que só
publicaria o relato se a testemunha formalizasse o depoimento aos três
delegados, o que foi feito. A chefia de redação do jornal, no entanto, preferiu
aguardar o depoimento do policial aos delegados da Delegacia de Homicídios, o
que ocorreria dias depois. Foram seis oitivas em três semanas, realizadas no
Círculo Militar da Praia Vermelha, na Urca, para evitar a imprensa, que se
aglomerava diariamente em frente à sede da delegacia, na Barra da Tijuca, atrás
de novidades no caso. Na quarta-feira, 9 de maio, a reportagem de Werneck foi
manchete d’O Globo: “Delator envolve vereador no assassinato de Marielle.”
A partir daquele dia, Siciliano e Orlando da Curicica passaram a ser
tratados como os principais suspeitos pelos assassinatos. O vereador deu dois
longos depoimentos ao delegado Giniton Lages, sempre rebatendo o relato da
testemunha. Siciliano não demorou a enxergar naquele enredo as digitais da
família Brazão.
Os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão são velhos conhecidos da política
carioca. Domingos, 54 anos, é o segundo mais novo dos seis filhos de um casal de
portugueses radicados em Jacarepaguá. Ele foi o primeiro da família Brazão a se
aventurar nas urnas, em 1996, quando conseguiu uma cadeira de vereador. Dois
anos mais tarde, elegeu-se deputado estadual pelo PMDB, função que exerceu por
dezessete anos. Nesse período, Domingos acumulou um patrimônio declarado de 14,5
milhões de reais, em valores corrigidos.
Dono de uma rede de postos de combustíveis em sociedade com os irmãos, o
deputado foi investigado na Polícia Federal por um suposto envolvimento em um
esquema de adulteração de combustíveis e sonegação fiscal, mas, por falta de
provas, não chegou a ser denunciado à Justiça. Em 2015, um ano após ser reeleito
pela quarta vez consecutiva, tornou-se conselheiro do Tribunal de Contas do
Estado, onde ficou até março de 2017, quando ele e mais quatro conselheiros
foram presos pela Lava Jato fluminense na Operação Quinto do Ouro, acusados de
corrupção. Todos acabaram soltos nove dias depois, mas permanecem afastados do
TCE.
O irmão mais velho, João Francisco Inácio Brazão, o Chiquinho, 57 anos,
também foi eleito vereador em sua primeira disputa eleitoral, em 2012, embalado
pela carreira política de Domingos. No pleito seguinte, foi reeleito.
Os currais eleitorais dos irmãos Brazão e de Siciliano espalham-se pela
mesma região do Rio, os bairros da Zona Oeste situados entre o Parque Nacional
da Tijuca e o Parque Estadual da Pedra Branca: Tanque, Taquara, Pechincha,
Curicica, Freguesia, Anil, Gardênia Azul, Itanhangá, Rio das Pedras, Vargem
Grande, Vargem Pequena, Praça Seca e Recreio dos Bandeirantes. Juntos, esses
locais, todos com maior ou menor presença de milicianos, somam 527 mil
eleitores, segundo o Tribunal Superior Eleitoral. Domingos Brazão costumava
fazer campanha em Rio das Pedras, como afirmou o vereador Nadinho na CPI das
Milícias, em 2008.
Em meados de abril do ano passado, antes da publicação da reportagem de
Antônio Werneck, Chiquinho e Domingos convidaram Marcello Siciliano para um
almoço no Terraço Restaurante, no Centro do Rio. Conforme relato de Siciliano
sobre a conversa, Domingos lhe disse que Chiquinho iria se candidatar a deputado
federal nas eleições de outubro. Como sabia que o rival também planejava sua
candidatura, foi direto ao ponto: “Marcello, vou te pedir um favor. Não me
atrapalha, porque precisamos ganhar essa eleição.” Dois interlocutores de
Siciliano confirmaram o diálogo à piauí. Chiquinho não quis se pronunciar sobre
o episódio. À polícia, Domingos negou ter desavenças políticas com o rival da
família.
Acuado pelo caso Marielle, depois das acusações veiculadas em maio,
Marcello Siciliano desistiu de disputar as eleições de 2018. Chiquinho se elegeu
deputado federal pelo Avante – em todas as quinze seções eleitorais da favela de
Rio das Pedras ele foi o campeão de votos.
Havia mais razões para suspeitar que os irmãos Brazão tinham alguma
influência sobre o depoimento do sargento Ferreira ao jornalista Werneck. O trio
de delegados, antes de encaminhar Ferreira à Delegacia de Homicídios, convidou o
repórter para ouvir o relato nas instalações da Superintendência da Polícia
Federal, e o próprio superintendente da PF no Rio, Ricardo Saadi, ignorava a
presença da testemunha ali. Além disso, HK, um dos três delegados envolvidos na
história, era um bom amigo de Domingos Brazão e, na época da delação,
investigava Siciliano por irregularidades fiscais na boate do vereador na Barra.
“Foi um depoimento feito para vazar para a imprensa. Teve outro objetivo que não
a investigação”, me disse Marcelo Freixo.
Policiais federais que apuram o caso suspeitam que o delator tenha sido
levado até o trio de delegados por Gilberto Ribeiro da Costa, um policial
federal aposentado muito próximo de HK e Lorenzo Pompílio da Hora e que também
foi assessor de Domingos Brazão no Tribunal de Contas do Estado. Costa nega ter
participação no episódio: “Isso é um devaneio, uma história fantasiosa. Já
prestei depoimento na DH, tudo foi esclarecido.” A advogada de Ferreira, Camila
Moreira Lima Nogueira, afirmou ter sido ela a responsável por levar seu cliente
até a PF: “Eu não tinha acesso a ninguém da Polícia Civil […] Na PF, também não
tinha. Eu fui até lá porque tinha um cliente que conhecia os delegados”, me
disse por telefone.
Menos de uma semana depois da publicação da reportagem de Werneck com
acusações do sargento Ferreira contra Siciliano e Orlando de Curicica, o
delegado Giniton Lages foi ouvir esse último em Bangu 9. Curicica admitiu ter se
encontrado com Siciliano em um restaurante da Zona Oeste, mas disse que se
limitou a cumprimentar o vereador. Também negou ter participado das mortes de
Marielle. No dia seguinte, o advogado de Curicica convocou a imprensa para
apresentar uma carta escrita pelo cliente. No documento, o miliciano identifica
nominalmente o PM que o delatou – até então, os jornais vinham omitindo a
identidade dele – e o ataca. “Não tenho qualquer envolvimento nesse crime
bárbaro”, escreveu. “O policial Rodrigo Ferreira não tem qualquer credibilidade,
haja vista o mesmo chefiar as milícias do Morro do Banco [em Itanhangá, Zona
Oeste] em conjunto com o tráfico de drogas da região.” A notícia sobre a carta,
divulgada inicialmente pelo jornal O Dia, teve pouco destaque na edição impressa
d’O Globo.
Dizendo-se ameaçado de morte no presídio, Curicica conseguiu ser
transferido em 9 de maio para a penitenciária de Bangu 1, de segurança máxima.
Quarenta dias depois foi transferido novamente – dessa vez para o presídio
federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, também de segurança máxima. Em
julho, a Polícia Civil prendeu dois policiais militares suspeitos de integrar a
milícia de Orlando de Curicica; um deles teria participação nos assassinatos de
Marielle e de Anderson. O cerco ao miliciano se fechava cada vez mais. Acuado,
ele decidiu contra-atacar.
No final de agosto de 2018, Curicica pediu ao juiz Walter Nunes da Silva
Júnior, corregedor do presídio federal em Mossoró, que o pusesse em contato com
um procurador do Ministério Público Federal. Queria falar o que sabia. Por
orientação do juiz, o advogado de Curicica formalizou o pedido, e Silva Júnior
encaminhou o documento à procuradora Caroline Maciel, coordenadora do grupo de
direitos do cidadão da instituição no Rio Grande do Norte. O depoimento de
Curicica a Maciel durou mais de uma hora. O conteúdo era explosivo, mas não veio
a público naquele momento. Ao retornar de Mossoró, a procuradora transcreveu as
palavras do miliciano em um documento e o encaminhou, em sigilo, para a
procuradora-geral da República, Raquel Dodge.
Alguns dias antes, em 19 de agosto, O Globo publicou uma reportagem não
assinada que tratava de uma possível ligação entre a morte de Marielle e um
grupo de matadores de aluguel formado por milicianos, chamado Escritório do
Crime. Pela primeira vez, o grupo era vinculado ao caso. Era uma reviravolta nas
investigações.
A reportagem dizia que o Escritório do Crime é suspeito de praticar
assassinatos por valores que variam entre 200 mil reais e 1 milhão de reais,
conforme o perfil da vítima e a complexidade da ação. A fama da gangue viria do
fato de não deixar rastros de seus crimes. Uma de suas bases territoriais é
justamente a região de Rio das Pedras, por onde passou o Cobalt prata com os
matadores da vereadora do PSOL. O grupo de sicários se formou no início deste
século com a função de proteger os bicheiros na violenta disputa por
territórios. O Ministério Público suspeita que o Escritório do Crime esteja
envolvido em pelo menos dezenove homicídios não esclarecidos nos últimos quinze
anos no Rio de Janeiro.
A reportagem d’O Globo baseava-se no depoimento à Polícia Civil, dias
antes, de um “integrante do bando” que andou pela região onde Marielle e o
motorista Anderson foram mortos. Ele havia circulado pelo local minutos antes do
crime, como descobriu um rastreamento feito pela polícia em seu celular. A
identidade do suposto integrante do Escritório do Crime foi revelada apenas em
janeiro deste ano. Tratava-se do major Ronald Paulo Alves Pereira. O policial
militar, de 43 anos, foi acusado de participar, em 2003, da chamada chacina da
Via Show, na qual quatro jovens, após terem sido sequestrados na saída de uma
boate em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, foram cruelmente
assassinados. Apesar de estar respondendo na Justiça pelo crime – o júri está
previsto para abril deste ano –, Pereira foi promovido de capitão a major alguns
anos depois. Quando depôs a respeito do Escritório do Crime, em agosto último,
estava prestes a se tornar coronel, posto mais alto da Polícia Militar.
O major é apontado como um dos líderes do Escritório do Crime, junto com o
ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, 42 anos. Quando atuava no
Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio, o Bope, Nóbrega tornou-se
conhecido por sua habilidade com todo tipo de armas – era atirador de rara
precisão – e pela crueldade com que comandava os treinamentos entre o fim dos
anos 90 e o início dos anos 2000. “Ele batia nos alunos com barra de ferro.
Chegou a quebrar o braço de um e a estourar o rim de outro”, me disse um
policial que atuou no batalhão na época.
Tanto Adriano Nóbrega quanto Ronald Pereira foram homenageados na
Assembleia Legislativa do Rio com menções honrosas propostas pelo então deputado
estadual Flávio Bolsonaro. Para justificar a homenagem a Nóbrega, que ocorreu em
2003, Flávio argumentou que o então capitão prestava “serviços à sociedade,
desempenhando com absoluta presteza e excepcional comportamento nas suas
atividades”. Nóbrega havia sido apresentado a Flávio por um antigo colega do
Bope, Fabrício Queiroz – o ex-assessor do filho de Jair Bolsonaro que está no
centro do escândalo envolvendo repasses suspeitos de dinheiro para Flávio na
Alerj.
Em 2005, após prender doze traficantes num morro no Rio, Nóbrega ganhou
outra homenagem, também promovida por Flávio: a Medalha Tiradentes, a mais alta
honraria da Alerj.
Quando ainda estava no Bope, Nóbrega envolveu-se com o jogo do bicho,
atuando como segurança, e começou a ser acionado para praticar assassinatos a
mando dos chefões da jogatina. Foi preso em 2011 em uma operação policial contra
os contraventores e, três anos mais tarde, acabou expulso da PM. Isso não
impediu Flávio Bolsonaro de empregar a mulher e a mãe do ex-capitão em seu
gabinete na Assembleia Legislativa – a primeira desde 2007; a segunda, a partir
de 2016. As duas só foram exoneradas em novembro do ano passado, depois que o
nome de Nóbrega surgiu nas investigações do caso Marielle. Em janeiro deste ano,
depois que a ligação de Flávio com o ex-PM foi revelada pela imprensa, o atual
senador divulgou uma nota em que dizia sempre defender agentes de segurança
pública, mas atribuiu a nomeação das duas mulheres a uma indicação de
Queiroz.
Flávio foi o principal cabo eleitoral da campanha de Wilson Witzel, do PSC,
ao governo fluminense. O apoio do filho de Bolsonaro catapultou o então
desconhecido ex-juiz federal para a vitória no segundo turno, em 28 de outubro.
Durante a campanha, Witzel apareceu no alto de um caminhão no Centro de
Petrópolis, na serra fluminense, ao lado de dois candidatos a deputado pelo PSL,
partido dos Bolsonaro. Ambos exibiam orgulhosos uma placa de rua com o nome de
Marielle rasgada em dois pedaços. Segurando a placa mutilada, o então candidato
a deputado estadual Rodrigo Amorim bradou: “Esses vagabundos, eles foram na
Cinelândia [Centro do Rio] e, à revelia de todo mundo, eles pegaram uma placa da
praça Marechal Floriano e botaram uma placa escrito rua Marielle Franco.” E
continuou: “Eu e Daniel [Silveira, candidato a deputado federal] essa semana
fomos lá e quebramos a placa. A gente vai varrer esses vagabundos. Acabou PSOL,
acabou PCdoB, acabou essa porra aqui. Agora é Bolsonaro, porra.” Tanto ele
quanto Silveira foram eleitos. Enquanto a plateia vibrava ao fundo da imagem,
Witzel, que filmava tudo com o celular, virou o aparelho na própria direção e
disse: “É isso aí, pessoal, olha a resposta.” Dias depois, ele pediria desculpas
à família de Marielle.
O Escritório do Crime reapareceria na imprensa em 1º de novembro, quando os
jornalistas Vera Araújo e Chico Otávio publicaram no site do jornal O Globo uma
entrevista com Orlando da Curicica feita por escrito. O carioca Otávio construiu
sua reputação com reportagens investigativas sobre políticos do Rio. Em parceria
com Araújo, o repórter havia mergulhado na cobertura do caso Marielle – “sem
dúvida o maior que já cobri nessa área”, ele me disse.
Na entrevista de Curicica, realizada na última semana de outubro, o
miliciano resumiu o depoimento que tinha dado no final de agosto à procuradora
Caroline Maciel, em Mossoró. Disse que a Polícia Civil, incluindo a cúpula da
corporação, não investigava o Escritório do Crime porque recebia propinas do
jogo do bicho, ao qual os matadores eram ligados. “O que tenho a dizer, ninguém
gostaria de ouvir: existe no Rio hoje um batalhão de assassinos agindo por
dinheiro, a maioria oriunda da contravenção. A DH [Delegacia de Homicídios] e o
chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, sabem quem são, mas recebem dinheiro de
contraventores para não tocar ou direcionar as investigações, criando assim uma
rede de proteção para que a contravenção mate quem quiser. Diga, nos últimos
anos, qual caso de homicídio teve como alvo de investigação algum
contraventor?”, questionou o miliciano.
Curicica também acusava o delegado Giniton Lages, que deu início às
investigações, de pressioná-lo a assumir a autoria da morte de Marielle. “No dia
10 de maio, o delegado […] foi me ouvir, mas já chegou dizendo que tinha ido lá
para ouvir eu falar que o Siciliano tinha me pedido para matar a vereadora. Eu
disse que isso não era verdade. Ele disse: ‘Fala que o vereador [Siciliano] te
procurou e você não quis, e outra pessoa fez.’ Como me recusei, ele disse que ia
futucar a minha vida e colocar inquéritos na minha conta, que me mandaria para
Mossoró e, de fato, foi o que fez. Mas o tempo todo percebi que eles [os
investigadores] estavam perdidos, sem caminho nenhum.”
Procurado pela piauí, Barbosa não quis se pronunciar. Na época, por meio de
nota, refutou as acusações feitas no jornal. Lages negou ter ameaçado o
miliciano. “Palavras o vento leva”, me disse o delegado.
Os jornalistas Vera Araújo e Chico Otávio, que pretendiam publicar a
entrevista de Curicica no jornal impresso que circularia em 2 de novembro,
tiveram de antecipá-la no site d’O Globo ao saberem que o então ministro da
Segurança Pública, Raul Jungmann, convocara uma entrevista para o fim da tarde
do dia 1º. Em decorrência do depoimento do miliciano ao Ministério Público
Federal no Rio Grande do Norte, o ministro anunciou na coletiva a abertura de
inquérito na Polícia Federal para investigar uma possível obstrução de Justiça
por parte da Polícia Civil fluminense no caso Marielle. “A investigação [do
homicídio] de Marielle continua em nível estadual. Continua com polícia e
Ministério Público estadual. O que se está fazendo é criar um outro eixo, que
vai investigar aqueles que – sejam agentes públicos, sejam aqueles ligados ao
crime organizado ou a interesses políticos – estão procurando fazer de tudo para
impedir que se elucide esse crime. É uma investigação da investigação”, afirmou
Jungmann aos jornalistas.
Dias antes, o ministro se reunira em Brasília com Raquel Dodge e com a
coordenadora do MPF na área criminal, Raquel Branquinho, para discutir quais
medidas seriam adotadas depois do depoimento de Orlando de Curicica. O trio teve
a ideia de aproveitar as acusações do miliciano para pedir à PF que entrasse no
caso por meio de um inquérito que apurasse as ações da Polícia Civil no caso
Marielle. Uma equipe da Polícia Federal em Brasília, formada por um delegado e
por seis agentes, mudou-se para o Rio e passou a trabalhar com a máxima
discrição, em endereço sigiloso, longe da Superintendência da PF.
No início da noite de 14 de novembro, quarta-feira, o delegado Giniton
Lages assistia ao telejornal local da Globo no Rio quando tomou um susto. “O RJ2
teve acesso com exclusividade ao inquérito que apura as execuções da
ex-vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Oito meses
depois, a polícia acumula milhares de páginas, mas ainda tem poucas conclusões”,
disse o apresentador do telejornal. A reportagem afirmava que, apesar de o
Escritório do Crime ser citado no inquérito, até aquele momento a principal
linha de investigação da Delegacia de Homicídios ainda apontava para o vereador
Marcello Siciliano e o miliciano Orlando de Curicica. Parte dos papéis, em
páginas digitalizadas, havia vazado para o jornalista Leslie Leitão, produtor da
TV Globo no Rio, que acompanha o caso Marielle desde o início – depois de atuar
na imprensa como repórter de esportes e de polícia, ele migrou em 2017 para a
emissora carioca.
Lages supôs que a Globo preparava uma reportagem especial sobre o caso
Marielle para o Fantástico do domingo seguinte, dia 18, o que, segundo Leitão,
não estava nos planos da emissora. O delegado deixou o feriado de 15 de novembro
passar e, na manhã do dia seguinte, bateu à porta do juiz Gustavo Gomes Kalil,
da 4ª Vara Criminal do Rio, onde tramita o inquérito do caso. Pediu ao juiz que
concedesse liminar impedindo a emissora de citar detalhes da investigação. No
início da tarde, Kalil acatou o pedido: a Globo foi proibida de falar do
inquérito em reportagens, sob pena de pagar uma multa de 1 milhão de reais a
cada citação do documento. “O vazamento do conteúdo dos autos é deveras
prejudicial, pois expõe dados pessoais das testemunhas, assim como prejudica o
bom andamento das investigações, obstaculizando e retardando a elucidação dos
crimes hediondos em análise”, justificou o magistrado.
A emissora foi notificada da decisão ainda naquele dia. Coube aos
apresentadores Alexandre Garcia e Giuliana Morrone ler um editorial no Jornal
Nacional daquela noite: “A TV Globo quer assegurar o direito constitucional do
público de se informar sobre o que podem ser as falhas do inquérito que em oito
meses não conseguiu avançar na elucidação dos bárbaros assassinatos da vereadora
Marielle Franco e do motorista Anderson. E deseja fazer isso seguindo seus
princípios editoriais, o que significa informar sem prejudicar testemunhas ou
investigações.” A Globo recorreu, mas o Tribunal de Justiça manteve a decisão de
Kalil. A emissora acatou a medida e não voltou a exibir reportagens sobre o
inquérito.
O delegado Lages critica o comportamento da mídia no caso Marielle. “O
jornalista deve ter um freio ético. A imprensa atrapalha demais. O tempo do
inquérito não é o meu, nem o do Freixo, nem o da Globo. É o tempo dele.”
O Ministério Público Estadual do Rio passou por uma dança de cadeiras
importante no decorrer das investigações. Desde o início, o caso Marielle esteve
sob os cuidados de Homero das Neves Freitas Filho, titular da 23ª Promotoria de
Investigação Penal, responsável por acompanhar os inquéritos da Delegacia de
Homicídios na capital. Em junho de 2018, em entrevista ao jornal O Globo, o
promotor esbanjava otimismo: “Dentro dos recursos disponíveis, considero que os
avanços na investigação são grandes, com reais possibilidades de identificação e
prisão dos executores e mandantes.”
Mas as semanas passavam, e o inquérito se arrastava, sem rumo. Pressionado,
em 21 de agosto o procurador-geral de Justiça, Eduardo Gussem, decidiu promover
Freitas Filho à Procuradoria – ele passaria a atuar em ações que tramitavam em
segunda instância, no TJ do Rio, e deixaria o caso Marielle. A mudança coincidiu
com o depoimento em que Curicica acusava a Delegacia de Homicídios de
negligência na investigação. Freitas Filho se aposentou em 1º de fevereiro deste
ano. Procurado pela piauí, não quis se manifestar.
Para o lugar dele, o procurador-geral nomeou a promotora Letícia Emile
Alqueres Petriz, 38 anos, que há uma década atua no Ministério Público. Petriz
decidiu então pedir auxílio ao Gaeco (Grupo de Atuação Especial no Combate ao
Crime Organizado), um setor especializado do Ministério Público. Foi prontamente
atendida. A direção do Gaeco incumbiu a promotora Simone Sibilio do Nascimento
de auxiliar Petriz nas investigações do caso Marielle.
Antes de ingressar no Ministério Público, em 2003, Nascimento, 46 anos, foi
policial militar – chegou ao posto de capitã – e delegada na Polícia Civil.
Herdou dos tempos de PM o rigor e a disciplina profissional. Formou-se em
direito pela PUC-Rio em 1999 com o estudo “Controle externo do mp na atividade
policial”. O título do trabalho já prenunciava os embates que ela teria com a DH
no caso Marielle.
Diferentemente do promotor Homero Freitas Filho, Petriz e Nascimento sempre
suspeitaram da veracidade das declarações da testemunha que acusou Siciliano e
Curicica pelo crime. Na investigação que passaram a fazer com a ajuda dos
policiais federais vindos de Brasília, as duas apostaram suas fichas no
envolvimento do Escritório do Crime na morte de Marielle. Com autorização
judicial, o grupo já obteve trinta quebras de sigilo bancário e oitenta quebras
de sigilo telefônico de alvos ligados ao grupo miliciano.
Em algumas conversas gravadas, o ex-capitão Nóbrega é chamado de
“patrãozão” pela milícia de Rio das Pedras. Em um dos diálogos, um miliciano
afirma ter recebido quatro caixas de uísque de um deputado – o parlamentar não é
identificado pelo Gaeco. Em 21 de janeiro, as promotoras recorreram à Draco
(Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas), da Polícia Civil – e
não à Delegacia de Homicídios – para cumprir os mandados de prisão, na manhã do
dia seguinte, de treze membros do Escritório do Crime. Entre eles estavam o
ex-capitão Adriano Nóbrega e o major Ronald Pereira. A operação foi batizada de
“Os Intocáveis” – era uma maneira de realçar a impunidade que havia anos pairava
sobre o grupo. A fim de evitar vazamentos, os celulares de todos os policiais
envolvidos na operação foram confiscados até o dia seguinte. O cuidado não foi
suficiente: oito dos trezes alvos conseguiram escapar do cerco policial, e seis
continuavam foragidos até o fim do mês do passado. Entre eles, Nóbrega.
A promotora Petriz fez questão de ir à casa do major Pereira, em Curicica,
para acompanhar sua prisão. Ao vê-lo algemado, ela foi direto ao assunto: “O que
você tem a dizer sobre o assassinato de Marielle?” O PM abaixou a cabeça e ficou
em silêncio. Nem Petriz nem Nascimento quiseram falar com a piauí. A defesa do
major nega tanto o envolvimento dele com o Escritório do Crime quanto a
participação na morte de Marielle.
Às 6h15 do dia 21 de fevereiro, exatamente um mês após a execução da
operação “Os Intocáveis”, Domingos Brazão levou um susto ao se deparar com
quinze agentes da PF dentro de sua casa. Com uniformes camuflados, capacetes e
metralhadoras, eles arrombaram a porta da residência de Brazão, em um condomínio
fechado na Barra da Tijuca. Os policiais cumpriam um dos oito mandados de busca
e apreensão para “apurar possíveis ações que estariam sendo praticadas com o
intuito de obstacularizar as investigações dos homicídios de Marielle e
Anderson”, conforme nota divulgada pela PF. Os outros alvos eram o delegado HK,
o agente aposentado Gilberto Costa, o sargento Rodrigo Ferreira e sua advogada,
Camila Nogueira.
As promotoras e a Polícia Federal já estão certas da participação do grupo
de assassinos no crime contra a vereadora. Quem mandou matar e por qual motivo
são questões ainda sem respostas. “O crime se espalhou pelo poder constituído do
Rio. Tem bancada. É uma metástase sem controle. O estado não sai mais dessa
situação por suas próprias mãos”, me disse uma autoridade que participa das
investigações do caso Marielle.