quarta-feira, 27 de junho de 2018

Contracultura


Em plena era pós política e caótica atual, a qual fomos resignadamente dirigidos pela contra revolução neoliberal dos anos 80, disponibilizo um texto de 1974 da revista MM.

Enfatizando, texto de 1974!

Em tempos 'bolsonarescos', onde os "cordeiros violentos" (cordeiros com um sistema socioeconômico e violentos entre si) e os "ecoalternativos new age" não atacam a raiz do mal social, necessitamos urgentemente de uma nova contracultura...
 

Contracultura
A outra face da sociedade moderna
Texto publicado no “fascículo de Cultura Moderna da revista MM em junho de 1974


O repúdio das gerações jovens à “coisificação” do indivíduo produzida pela sociedade de massas, origina o fenômeno da “contracultura”, fascinante e contraditório, que aspira configurar uma nova “consciência”.
Quando a geração mais jovem começou produzir sua própria realidade, procurando diferenciar-se de seus pais, a contracultura se transformou numa verdadeira recusa de toda a ordem social existente, levantando bandeiras políticas e colocando nas formas econômicas a causa da alienação e infelicidade humanas. Esses propósitos foram veementemente manifestados nas grandes concentrações públicas, que conseguiram reunir milhares de jovens de todo o mundo.

Se um traço parece ser distinto entre a década passada (nota do Barbieri: a matéria provavelmente refere-se aos anos 60) e o começo da década presente (anos 70) é aquele que como regra geral tem sido chamado de “rebelião juvenil”. Esse conceito, amplo e ambíguo, define uma das problemáticas mais palpáveis da realidade contemporânea e se explica por meio de dois fenômenos simultâneos em sua manifestação e justapostos em suas conseqüências: a nova consciência e a contracultura.

Atrás dessas denominações genéricas e um tanto difusas há, todavia, uma realidade inquestionável e um denominador comum: a repulsa das gerações mais jovens a tudo aquilo que seja tradição, padrões estabelecidos, normas inflexíveis, valores universais e definitivamente válidos.

Como forma peculiar de manifestar sua oposição ao sistema vigente, a juventude começou a produzir uma série de fenômenos  que, em termos antropológicos entram no amplo campo da cultura: anarquia no vestir (as primeiras tentativas de cabelo comprido e roupa desmazelada realizadas pelos jovens norte-americanos da década de 50), relaxamento dos costumes e das relações (expressas plenamente com o movimento  hippy, também conhecido como “hippie”), ruptura com os padrões artísticos aceitos por anos (aparecimento da “pop”, da “op” e outras anárquicas expressões de arte contemporânea) e, por último, questionamento da ordem social e econômica imperante (a crítica social do alemão Herbert Marcuse, que fundamentou as rebeliões estudantis de Paris em 1968).

Em síntese, a contracultura procura, de uma forma ou de outra, colocar um fim na ordem aprazível, na qual se havia encastelado o mundo ocidental e abrir-se em relação a um universo de dimensões e proporções desconhecidas, que ao mesmo tempo atrai e repugna. 

Protesto contra a Guerra do Vietnam os jovens passam a contestar!

Tecnocracia e contestação



Logo ao término da Segundo Guerra Mundial, à medida que se afirmava a hegemonia internacional dos Estados Unidos, os padrões culturais dessa poderosa nação começaram a reger os desejos de todo o mundo ocidental. Assim, os idéias de “progresso sustentado”, “modernização constante”, “racionalização plena”, “planejamento absoluto” e outros similares, converteram-se em imperativos, indissoluvelmente ligados às esperanças de segurança social, felicidade individual, adequada relação entre homens e recursos, em suma, às esperanças que despertaram o fim dos horrores da guerra. 

O formidável desenvolvimento tecnológico e os assombrosos feitos da ciência, assim como o elevado nível de vida e a esplêndida satisfação de necessidades   de que desfrutou a população norte-americana durante os primeiros anos da década de 50, fizeram supor que aqueles idéias estavam a ponto de serem alcançados e que havia um único caminho para isto: a recém-institucionalização tecnocrática. Em termos sociológicos, esta é a forma em que a sociedade industrial avançada concebe todo o seu sistema organizativo. 

Segundo Theodore Roszak, o grande segredo da cega aceitação que durante muitos anos provocou a tecnocracia é a sua capacidade de convencer, sobre a verdade de três premissas que são fundamentais:

1. As necessidades vitais do homem são de caráter puramente técnico. Os requisitos da condição humana, portanto, podem ser adequadamente entendidos e resolvidos por meio de um sistema de análises e de um método operativo que se sustenta nesta afirmação.

2. A análise e a interpretação das necessidades do homem, assim como a sua satisfação programada, resultam infalíveis em 99% dos casos. Desta maneira, a tecnocracia instaura o princípio de que unicamente submetendo-se a seus ditados o homem encontrará progresso, segurança e bem-estar, inclusive ao preço de uma progressiva despersonalização e perda de responsabilidade.

3. Os especialistas da tecnocracia – habitualmente chamados tecnocratas, fazem parte de uma espécie de céu de eleitos que lhes possibilita não apenas o conhecimento das leis sociais, mas, também, e isso talvez seja o mais importante, uma elevada posição dentro do “status” existente. É fundamental, pois, alcançar, de qualquer forma, esta posição de privilégio.

Apesar do êxito inicial que tiveram esses postulados, logo a seguir algumas mentes começaram a assinalar, de forma isolada e até quase incoerente, os perigos que semelhante ordem social acarretava: perda da individualidade, alienação em função de um consumo crescente e desnecessário, incapacidade de tomar determinações pessoais e absoluta desvinculação dos centros de poder com a  massa da população.

Não obstante essas advertências, formuladas por pensadores como Norman Mailer, Herbert Marcuse, Henry Lefebre e Jean Paul Sartre, entre outros, os adultos dos anos 50 aceitaram passivamente a nova realidade social que se lhes estava impondo e deixaram a função de denúncia nas mãos de reduzidos grupos de intelectuais ou universitários. 

Alguns focos de rebeldia, marcados sobretudo pelo existencialismo sartreano começaram, não obstante, a propagar-se pelos países mais devastados da Europa e pelas cidades mais populosas dos Estados Unidos. Quem foram estes rebeldes? Como manifestaram sua insatisfação? Basicamente se tratou de artistas que utilizaram diversos meios de expressão para tornar público seu desagrado, seu “fastio intelectual” como diziam alguns.

Na França, por exemplo, o movimento existencialista encontrou seu expoente máximo na cantora Juliette Greco que, sem nenhuma maquiagem ou vestuário especial, cantava temas onde o sonho de um mundo sem guerras e livre de opressões econômicas era um tema constante.  Nos Estados Unidos, o novelista Jack Keruac e o poeta Allan Ginsberg  postularam uma possibilidade redentora através da cultura oriental, até então completamente ignorada no ocidente.

Outros nomes, mais ou menos memoráveis, poderiam ainda serem citados. O jovem James Dean, por exemplo, construiu dentro do mundo cinematográfico o paradigma do inconformismo para muitos jovens do mundo todo. Outro ator, Marlon Brando, instaurou do mesmo modo a violência incontrolável como meio de manifestar repugnância em relação à sociedade norte-americana. O quase adolescente Andy Warholl, por seu lado, destruiu os clássicos moldes da expressão plástica e inaugurou um caminho que ainda transita com singular popularidade.

Todos, entretanto, não chegaram a se constituir em mais do que precursores do que apenas 20 anos depois seria um fenômeno de dimensões universais e de proporções incontroláveis: a contracultura em nível massivo e popular. Qual era – e qual é – seu objetivo primordial? Pode-se resumir nos seguintes postulados: 

“Opor à arregimentação da tecnocracia um mundo mais espontâneo, onde os indivíduos tenham um amplo campo de esclarecimento, onde as responsabilidades individuais e sociais sejam plenamente assumidas, onde o consumo deixe de ser o centro da vida de milhões de pessoas, onde os sentimentos humanos possam ser expressos livremente, onde os instintos do homem, finalmente, possam ser satisfeitos, sem nenhum tipo de condicionamento cultural.”

Festival de Woodstock em 1969 ajuda a revelar para o mundo uma nova sexualidade.

Eros e civilização

Com efeito, desde que Sigmund Freud afirmou ser a base de toda a organização social o controle do “princípio do prazer” em nome da civilização, foram muitos os estudiosos que postularam a necessidade de que o homem, para ser autenticamente tal, devia livrar-se das pressões provocadas pelas sociedades que ele mesmo criara. 

Assim, o psicanalista, Wilhem Reich foi um dos primeiros, da década de 30, em insistir sobre a necessidade  de uma absoluta liberdade sexual: abolição da relação por casal, substituindo-a pela relação múltipla; ruptura com tabus sobre adultério e virgindade; liberação das travas que, através do sexo, a sociedade impõe, obstruindo o desenvolvimento da mulher; e reconhecimento humanitário da homossexualidade e bissexualidade em lugar de puni-las legalmente. Em suma, um catálogo de propostas de liberdade irrestrita na ordem erótica que, segundo afirmava Reich, haviam de conduzir à libertação total do ser humano.Outro adulto, científico também, formado muito intimamente com a escola freudiana, é o alemão Herbert Marcuse, que recuperou como centro de seus estudos a oposição entre Eros e a Civilização  e cujos escritos políticos foram a bandeira teórica das rebeliões estudantis de Paris em 1968.

Mas, seria na volumosa obra de Jean Paul Sartre que essas – e outras – afirmações contra um regime social que os estudiosos consideram injusto, encontraria sua mais explosiva formulação e seus primeiros resultados práticos.

A força com que essas teorias se afirmaram entre a juventude dos anos 50 foi expressa por meio de profundas cabeleiras masculinas, os primeiros sinais de descuido no vestir, os tímidos intentos de uma moral menos puritana e mais liberal, o nascimento dos movimentos femininos de liberação e, muito especialmente, as expressões artísticas que denunciavam como complacentes e alienadas tudo o que havia sido feito até então.

Autores como Jean Genet, Albert Camus, Eugene Ionesco, Samuel Becket e os já mencionados Keruac e Ginsberg, expressaram através de suas obras teatrais, seus poemas e suas novelas, essa sensação de absurdo e essa espécie de insatisfação total ante os termos em que se concebia a vida na sociedade ocidental. Em todas as produções, como aríete, o sexo era o tema dominante.

O congestionamento para chegar ao Festival de Woodstock.

A explosão juvenil



Mas, em mais de um sentido, essa atividade contra cultural continuava sendo eminentemente “cultural”. Eram produzidas por homens adultos e consumidas por intelectuais sofisticados. De fato, permanecia marginalizada em cenáculos de especialistas e não alcançavam nenhum tipo de transcendência massiva.

Foi necessário, pois,  que a geração mais jovem, a que nasceu por volta de 1940, começasse a produzir sua própria realidade, procurando diferenciar-se de seus pais. Nesse momento a contracultura se transformou numa verdadeira recusa de toda a ordem social existente, mas não fez, como no caso do existencialismo, em nome de um mero protesto individual, mas sim levantando bandeiras políticas e colocando nas formas econômicas a causa da alienação e infelicidade humana.

A quase ingênua rebeldia do Rock’n’Roll deixou lugar à revolução musical simbolizada pelos Beatles. Sons novos, ritmos incoerentes, bailes sem normas, canções com letras onde o amor livre e o relacionamento com a natureza eram uma constante, identificaram-se com o uso de roupas  não convencionais, com impressionantes cabeleiras e com atitudes desconcertantes.

Ao mesmo tempo, os setores mais inconformistas  procuraram segregar-se do corpo social que com relativa elasticidade havia acabado por aceitar e absorver aquilo tudo simbolizado pelos Beatles, formando pequenas comunidades, de autonomia autossuficiente, onde colocavam em prática uma série muito confusa de noções que caíram sob o denominador comum de “hippismo”.

Simultaneamente, também o mundo da arte acadêmica rompia as comportas e os movimentos radicais (pop, op, cinético, etc.) começaram a suceder-se vertiginosamente. As drogas como estimulantes na obtenção de sensações desconhecidas e a busca de verdades absolutas nas tradições orientais do budismo e a cultura foram, finalmente, os pontos culminantes e unificadores dessas tendências díspares.
 


Um dos muitos ônibus psicodélicos dos anos 60 sugerindo a vida em comunidade.

Um balanço revelador



Que é, em suma, o que trouxe de novo a contracultura?



Em tal sentido, o Institute of Social Research (Instituto de Pesquisa Social), de Nova York elaborou o seguinte esquema que, a título de balanço provisório, tenta traçar um sintético panorama das regaras abarcadas pela contracultura e seus efeitos mais visíveis na vida cotidiana:

1. Uma arte em caos permanente.
À convencional visão da arte ordenada e organizativa, a contracultura apôs, com melhores resultados, a noção da anarquia e o caos como fundamentos da produção artística.

2. Uma moral psicodélica.
Nada do que foi dito teria sido possível sem o prévio aparecimento de uma nova moral, mas essa também não teria se consolidado se não tivesse havido no terreno artístico a experiência psicodélica. A utilização consciente das drogas, a investigação a fundo dos sentidos, a ruptura do mundo das formas, cores e sons, permitiram aos contestatários suspeitar que a moral devia estar regida por valores em constante movimento.

3. O sexo como instrumento político.
A partir de Freud e de acordo com as investigações de vários psicanalistas, considerou-se que a repressão sexual da sociedade ocidental encobria sob suas normas morais e religiosas uma verdadeira repressão ideológica. A contra cultura arremeteu, através da defesa de todo tipo de sexualidade e, especialmente, dos movimentos de liberação feminina, contra a concepção, afirmando-se inequivocamente a “a função política do sexo”.

4. A busca do infinito perdido.
Tanto a análise do interior da sociedade como as informações oferecidas por especialistas em cultura oriental permitiram que a contra cultura levantasse como bandeira de luta a necessidade de admitir a existência de um vazio “de um infinito aterrador, onde o homem encontra a medida de si mesmo e dá um sentido verdadeiro à vida”.

5. A economia a serviço do homem.
Este é possivelmente o campo onde a contracultura logrou menos resultados diretos. Com efeito, nem as comunidades hippies, nem os atos de rebeldia estudantil, propuseram um sistema econômico que substituísse os existentes, limitando-se a criticar os resultados que estes motivam. Em troca, essa crítica radical e violenta originou uma série de revisões nos planos de economia mundial que, a título provisório, parecem indicar uma tendência generalizada em direção à “humanização” da economia. (Nota do Barbieri: como hoje bem sabemos o capitalismo reagiu e os neo conservadores no poder estão conseguindo anular todas as conquistas liberais deste período!)

6. Desmistificação da cultura.
Este item, segundo os especialistas, foi onde “se alcançou os resultados mais eficazes e revolucionários”. Contra o que consideram uma noção elitizante da chamada Alta Cultura, o movimento juvenil, dizem, “impôs, uma  concepção definitivamente democrática onde a cultura sem letra maiúscula e sem qualificativos é patrimônio comum a todos os homens”. Não se trata, acrescentam, da conhecida “cultura de massas” mas, pelo contrário, “de uma cultura destinada a satisfazer autenticamente as necessidades expressivas do ser humano”.

7. Objetividade contra mitologia.
Como resultado total da tarefa destruidora empreendida pela contracultura, a objetividade aparece como a contrapartida dialética da mitologia fundamentada na tecnocracia. Assim, enquanto as gerações adultas continuam crescendo em eficácia, no progresso constante, nas vantagens de uma crescente industrialização, a gente jovem renega não apenas essas crenças; consideram-nas “mitos modernos”, que ocultam a dinâmica da história, subtraem do indivíduo a capacidade de fabricar seu próprio destino, oferecem uma visão pessimista da realidade. 







Foto emblemática do Festival de Woodstock que acontece no auge do Movimento Hippie.

Exploração da utopia



Como todo movimento social que se define no curso da ação social e que justifica, “a posteriori”, sua inexistente base ideológica, a contracultura alcançou uma espécie de clímax em que tudo parecia possível e começou logo a declinar, a retrair-se em seus próprios efeitos. Esse momento culminante foi o marcado pelas rebeliões estudantis ocorridas na Europa durante 1968 e cujos ecos tardios (por exemplo o festival de Avándaro) na América Latina, apenas lograram ocultar o acaso de uma década marcada  a fogo pela ideia da revolução.

Depois deste estalo brutal, a contracultura começou a depurar suas próprias filas, a integrar-se pacificamente no sistema que combate e ao qual impôs, sem dúvida, radicais transformações. Chegou então a hora dos balanços, do acerto de contas. E é nesse processo que se encontram atualmente seus teóricos mais importantes. Herbert Marcuse, por exemplo, dono de uma atividade criadora assombrosa, foi o primeiro a revisar muitas de suas concepções e a formular novas propostas a favor de um mundo melhor. Os radicais norte-americanos deixaram para trás o arrebatamento de Ginsberg e procuraram, através dos trabalhos de Noam Chomsky, uma base teórica que torne operativa a contracultura espontânea de estudantes e gente jovem em geral. Os artistas, que com tanto fervor romperam fronteiras durante a década passada, começaram a fixar novas metas e, a moral, tão ferozmente combatida, parece renascer sobre a base de conteúdos diferentes e formas originais.



Tudo indica, em seu conjunto, a síntese das experiências vividas e a formulação, partindo delas, de objetivos transformadores em escala mundial. O processo se verifica à margem de organismos oficiais e de sistemas institucionalizados, não reconhece nenhuma orientação precisa e se identifica, em todas as partes, como uma nova e vigorosa exploração da utopia.
Texto publicado no
fascículo de Cultura Moderna
da revista MM em junho de 1974





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