Como a "flexibilização" das leis trabalhistas e a onda do microempreendedor, associado ao tecnofetichismo (usa Uber e outros? Sim, vc fomenta a exploração) e ao exclusivo olhar pro próprio umbigo arruínam os trabalhadores e a sociedade.
Euforia com aplicativos de serviços dá lugar à frustração de trabalhadores
Avanço da 'uberização' acarretou bicos precários e diminuição na renda,
avalia autor
CARLOS JULIANO BARROS
[RESUMO] Euforia com aplicativos de serviços dá lugar à frustração de
trabalhadores, em um cenário que deve se complicar com novas
transformações.
Em novembro do ano passado, um protesto de centenas de motoboys e
ciclistas da Rappi trancou a avenida Paulista. Os entregadores da startup
colombiana, um dos incontáveis aplicativos de delivery na cidade de São Paulo,
reivindicavam aumento na remuneração das corridas —o valor mínimo fica na casa
dos R$ 5.
As queixas se estendiam ao prazo para as tarefas e às penalidades em caso
de atraso ou recusa do serviço. Além de bloqueios temporários, os entregadores
estão sujeitos a dívidas se o aplicativo não processa a tempo o cancelamento de
uma viagem.
Meses antes, fiscais do extinto Ministério do Trabalho já haviam aplicado
multas milionárias a duas concorrentes da Rappi: a Loggi e a Rappido, empresa do
grupo Movile, um dos raros espécimes brasileiros de “unicórnio”, ou startup com
valor de mercado de ao menos US$ 1 bilhão.
Ambas foram autuadas por infrações à legislação trabalhista decorrentes, na
avaliação dos fiscais, de uma irregularidade primordial: deixar de registrar
motofretistas como empregados. Só no caso da Loggi, o Ministério Público do
Trabalho cobra indenização de R$ 200 milhões.
A explosão de aplicativos de delivery é provavelmente o caso mais
representativo das rupturas geradas no Brasil pelo avanço da “gig economy” — a
economia dos bicos. Até poucos anos atrás, os serviços de entrega eram
pulverizados entre empresas de pequeno porte, que contratavam motoboys,
reconhecidos como categoria profissional regulamentada.
Hoje a atividade está ao alcance de qualquer um que aceitar termos e
condições de plataformas digitais. A avalanche de aplicativos é turbinada por
fundos de venture capital (investimento de risco) inclinados num primeiro
momento a perder dinheiro em ofertas a usuários e trabalhadores, para depois
ganhar mercado.
Assim como nos EUA, que viram a ascensão das startups do Vale do Silício no
rescaldo da crise de 2008, a “gig economy” deslanchou no Brasil com a recessão
iniciada em 2014. Meia década depois, ela funciona como uma verdadeira bomba de
sucção de 12,2 milhões de desempregados e 40,8% de trabalhadores
informais.
Embaladas por um “tecnofetichismo”, as plataformas oferecem de faxina a
passeio com cachorro e têm lado numa das batalhas ideológicas em curso no país:
a aprovação de reformas de orientação liberal sob os mantras do corte de custos
e da alergia à regulação do Estado. O presidente Jair Bolsonaro já afirmou que
as leis trabalhistas devem “se aproximar da informalidade”.
Em geral, os aplicativos se apresentam como meros intermediadores entre
consumidores e fornecedores. Apesar de seus algoritmos estipularem preços,
controlarem a prestação do serviço e aplicarem penalidades, as empresas
argumentam que os trabalhadores são autônomos. Assim, motoboys do iFood,
faxineiras da Parafuzo e motoristas da 99, para citar algumas das mais
conhecidas startups brasileiras, são considerados clientes, e não
empregados.
A chamada “uberização”, referência à plataforma de transporte mais popular
do mundo, é a mais recente e significativa das “mutações neoliberais” do mercado
de trabalho desde a década de 1970, na definição de Veena Dubal, professora da
faculdade de Direito da Universidade da Califórnia. Um sistema de gestão de mão
de obra que se ancora no discurso de liberdade e autonomia para transferir a
“empreendedores de si mesmos” os riscos da atividade econômica de gigantes
digitais.
No Brasil, o exemplo dos entregadores é paradigmático da terceirização
total de riscos. Para a prestação do serviço de entrega, diversos aplicativos
exigem o registro de MEI (Microempreendedor Individual), pessoa jurídica criada
em 2008 que limpou o terreno para a uberização. Se ficar impossibilitado de
trabalhar, o trabalhador só terá o salário mínimo garantido pela contribuição
paga por ele próprio ao INSS.
Para além da desproteção trabalhista, um estudo do Ipea de janeiro de 2018
acendeu outro alerta sobre a proliferação dos MEIs: o alargamento do rombo da
Previdência. Segundo o documento, o número de microempreendedores individuais
chegou a 7,7 milhões em dezembro de 2017. “Parece estar ocorrendo alguma
migração de empregados formais para MEI”, detecta a publicação.
Como a contribuição mensal ao INSS é quase simbólica (5% do salário
mínimo), o estudo estima uma necessidade de financiamento de ao menos R$ 464,7
bilhões nas próximas quatro décadas para cobrir o desfalque gerado por esse
regime.
É inegável que plataformas bem-sucedidas da “gig economy” têm aceitação
entre consumidores, não só pelos preços acessíveis mas também por centrarem fogo
em nichos pouco eficientes. Dentre as cidades dos 65 países em que a Uber atua,
São Paulo é a que mais usa o aplicativo.
Diante de altas taxas de desemprego e informalidade, baixa produtividade e
precarização até dos postos com carteira assinada, também não surpreende que os
aplicativos atraíam gente à caça de ocupação.
Porém, a longo prazo, essa mecânica pode desencadear o que Trebor Scholz
descreve em seu livro “Uberworked and Underpaid” (“uberexplorados e
sub-remunerados”): uma “corrida para o fundo do poço”. Quando motoristas
concorrem entre si e assumem o risco da atividade de uma plataforma, o limite é
rodar o dia todo e morar no próprio carro — o que já ocorre na Califórnia.
No setor de transporte de passageiros, aquilo que um dia já foi euforia
parece estar com os dias contados. Um estudo do Instituto JP Morgan Chase revela
um declínio considerável nas remunerações dos motoristas nos EUA. Em março de
2018, o rendimento mensal médio era 53% inferior em relação ao pico de
2014.
Neste ano, deve sair do papel a aguardada abertura de capital da Uber. Para
analistas, os anos de prejuízo (US$ 1,8 bilhão só em 2018) forçarão a empresa a
elevar tarifas para consumidores, a baixar repasses a motoristas ou a combinar
as duas medidas. Não há para onde correr.
Se a princípio os fundos de venture capital bancam tarifas sedutoras para
recrutar trabalhadores, a longo prazo tende a se consolidar “uma estratégia de
baixa remuneração”, segundo Veena Dubal. Como compensação, premiações
transformam o cotidiano de trabalho em uma espécie de gincana viciante,
prolongada e perigosa. Na capital paulista, o número de mortes entre
motociclistas aumentou 18% no ano passado .
A ressaca da “gig economy” vem colocando em xeque até mesmo modelos
econômicos consagrados, como a Curva de Phillips. Grosso modo, ela relaciona a
queda do desemprego ao crescimento da inflação.
Se há excesso de gente ocupada e com dinheiro para gastar, presume-se que
os preços disparem. Porém economistas de peso vêm levantando a hipótese de que a
Curva de Phillips perdeu a validade. Um deles é Lawrence Summers, secretário do
tesouro no governo do ex-presidente norte-americano Bill Clinton.
Nos EUA, o desemprego despenca desde a crise de 2008. Hoje está em patamar
historicamente baixo, inferior a 4%. Mas a inflação não decolou. Uma das
explicações é justamente a nova diagramação do mercado de trabalho. As rendas
geradas por bicos precários, instáveis e de baixa remuneração já não têm o poder
de empurrar os preços para cima.
É por essa razão que, em artigo no Financial Times, Summers cravou: “A
América precisa mais que nunca de seus sindicatos”. O palpite do economista é
que o poder de barganha dos empregadores aumentou e o dos trabalhadores
diminuiu. No caso dos aplicativos, em que a figura do patrão veste a fantasia
imaterial de um algoritmo, reivindicar direitos se torna ainda mais
desafiador.
No Brasil, a lógica da terceirização total de riscos para trabalhadores
atomizados já deu mostras do seu potencial de estrago em maio do ano passado,
com a histórica greve dos caminhoneiros. Desde 2007, com a aprovação da lei
11.442, que criou a figura do transportador autônomo de carga, a categoria
também atravessa um processo de uberização.
“Os caminhoneiros foram encorajados a se endividar e tentar adquirir
veículo próprio, com o sonho de maior autonomia e de ‘não ter mais patrão’, e
44,8% dos caminhoneiros estão endividados, conforme pesquisa da Confederação
Nacional do Transporte em 2016. Nada muito diferente do que ocorreu com
trabalhadores que perderam empregos e adquiriram carros para trabalhar para
aplicativos de transporte de pessoas”, compara Rodrigo Carelli, procurador do
Ministério Público do Trabalho e professor de direito da UFRJ, em artigo de
junho de 2018.
As plataformas da “gig economy” pegaram carona nas utopias igualitárias da
sua irmã mais velha e virtuosa, a “sharing economy” (economia do
compartilhamento), mas seguiram caminho oposto. Em vez de catalisar trocas
diretas de bens e serviços a partir da internet, a primavera de apps “acabou se
convertendo na oferta generalizada de trabalhos mal pagos e sem qualquer
segurança previdenciária”, escreve Ricardo Abramovay, economista e professor da
USP, no prefácio do livro “Uberização - A Nova Onda do Trabalho Precarizado”, de
Tom Slee (Elefante, 2017).
A longo prazo, a “gig economy” pode aprofundar a “dualização econômica” já
tão característica de países em desenvolvimento, como o Brasil, nos termos
propostos pelo professor de Harvard Dani Rodrik em “Straight Talk on Trade:
Ideas for a Sane World Economy” (“conversa franca sobre o comércio: ideias para
uma economia mundial saudável”, lançado em 2017). Nesse desenho, a ponta da
pirâmide da economia digital fica reservada a uma minoria de profissionais
criativos, altamente produtivos e bem remunerados.
Já a base é sustentada por uma massa de trabalhadores desprotegidos e
facilmente substituíveis.
Resta ainda um complicador: os desafios da robotização e da inteligência
artificial. Dos testes do carro sem motorista da Uber aos do delivery via drones
da Amazon, as perspectivas de inovações tecnológicas para o mercado de trabalho
não são das mais animadoras.
Carlos Juliano Barros é jornalista, documentarista e mestre em geografia
humana pela USP.
Ilustríssima / FSP 3.3.2019
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