sábado, 24 de fevereiro de 2018

As contradições que permeiam a pratica das ecovilas


"As contradições que permeiam a pratica das ecovilas" - excelente artigo do Prof Luis Fernando de Matheus e Silva, professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Alberto Hurtado, Santiago de Chile; Doutor em geografia Humana pela Universidade de São Paulo.


Quando o "alternativo" é institucionalizado (GEN, Gaia Education, etc) e ao mesmo tempo cooptado pelo capital, o que resta da ideologia? E afinal, qual é a ideologia?

Nas minhas "andanças" nesse mundo "alternativo", houveram grandes desilusões.
Jovens cheios de ideais e grande energia, porém desprovidos de um mínimo de cultura e noção da realidade; grupos místico-religiosos (sim o veganismo entra bem aqui); desesperados sem plano; e por aí vai.

Não desisti e ainda acredito muito numa "sociedade alternativa", mas tendo em mente que é o núcleo sociopolítico que deve ser priorizado, "a natureza" (essa forma que conhecemos - lembrando que não existíamos na maior parte da vida do planeta) e à moral no trato dos outros seres vivos e às futuras gerações será consequência. 
Mas um grau de racionalidade, sensatez e real vontade de estabelecer um outro modo de vida está bem difícil.

Um dos últimos contatos/notícias de um dos fundadores de uma ecovila foi que ele "está vendendo sua cota porque engravidou uma moça". Ou seja, a vida real era outra. Foi a que subitamente bateu sua porta e lhe colocou diante do que ele realmente quer, do contrário, estaria montando sua família aonde seu (suposto) ideal estava.


Pra dar o tom:


"... a terceira fase da geografia histórica das contraculturas espaciais ganha envergadura a partir da década de 1990 e pode ser considerada uma espécie de continuum de toda a movimentação iniciada nos “rebeldes” anos 1960. Tal como ocorrido anteriormente, as experiências despontadas nesta etapa traduzem as questões próprias de seu tempo. Neste sentido, a privatização generalizada e a (quase) total mercadificação da vida, seguidas por todo tipo de desregulamentações e aventuras especulativas financeiras desencadeadas ao longo da globalização do capitalismo neoliberal, amplificaram, em muito, os problemas socioambientais já existentes desde os albores do capitalismo.
Assim, em virtude do recrudescimento dos mecanismos de acumulação por espoliação e do processo de “destruição criativa da terra” (HARVEY, 2010) que notabilizam o atual estágio de acumulação, não causa estranhamento que o acento na sustentabilidade esteja muito mais presente agora do que em outros momentos da geografia histórica das contraculturas espaciais, afinal de contas, “vivemos o paradoxo de jamais ter sido tão vasto e profundo o processo de dominação e devastação da natureza quanto nesses últimos 30-40 anos em que até mesmo uma questão – a ambiental – se constituiu” (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 65)...


...não obstante, ainda que possua uma série de fundamentos e elementos capazes de serem alocados positivamente em favor da transição a uma nova sociedade, mais ecológica e igualitária, faz-se necessário analisar o fenômeno das ecovilas de uma maneira um pouco mais cuidadosa, nomeadamente quando de sua institucionalização e consequente “adaptação funcional” ao mercado e à sociedade capitalista, visto que muitas das perspectivas adotadas pela GEN para edificar um “mundo sustentável” mostram-se limitadas e trazem consigo uma série de problemas e incoerências que devem ser esmiuçadas.

...em relação a isso, o filósofo e economista grego Takis Fotopoulos (2000) alerta para a incapacidade apresentada pelo movimento de ecovilas, tanto no plano teórico como no prático, para construir uma nova ordem mundial. Seguindo a tradição pacifista presente na geografia histórica das contraculturas espaciais desde sua gênese, os “ecovileiros” buscam edificar uma nova sociedade ecológica através da “força do exemplo”, sem confrontar diretamente o sistema hegemônico.

... Fotopoulos acusa ainda as ecovilas de não se posicionarem de forma contundente contra a verdadeira causa dos problemas socioambientais atuais, mostrando-se muito mais preocupadas em adequar-se às regras que regem a sociedade capitalista do que propriamente contrapor-se a elas. Sinais claros desta “adaptação funcional” ao atual estado de coisas podem ser percebidos na incorporação e na reprodução acrítica de um discurso “pró-empreededorismo”, bem como no desenvolvimento de uma multiplicidade de negócios, que, apesar do “selo verde”, não raro mantêm a mesma lógica capitalista.

Isto, porém, não chega a ser de todo uma surpresa, dado que muitos dos que estão ligados ao movimento institucionalizado de ecovilas pertencem às classes médias acomodadas e buscam, nas palavras de Fotopoulos, apenas construir melhores condições de vida para si mesmos, de uma maneira bastante autoindulgente.

'Não por acaso, os partidários das ecovilas não parecem influenciar os bilhões de desprivilegiados que lutam para sobreviver, tanto no sul como no norte, e sua influência parece estar concentrada entre aquelas pessoas que já têm seus problemas resolvidos e agora podem se preocupar com um estilo de vida e a espiritualidade (FOTOPOULOS, 2000).'

Contudo, o afastamento de parte considerável do movimento institucionalizado de ecovilas de um programa social e político verdadeiramente comprometido com os interesses das classes trabalhadoras, bem como a sua participação (direta e/ou indireta) na reprodução do sistema dominante, não podem ser explicados unicamente pela origem “burguesa” de seus membros. Deste modo, considera-se que a obliteração do “potencial emancipador” das ecovilas, traduzido em sua despolitização e, consequentemente, na sua bem-sucedida adequação ao status quo, repousa no fato de o dito movimento ter sido criado e desenvolvido paralelamente à ascensão do neoliberalismo. Por conta disto, resultam bastante comuns a apropriação e a reprodução acrítica de certos discursos, ideologias e práticas que compõem o “arsenal” capitalista (particularmente neoliberal), algo que fica explicitado em inúmeras ocasiões, apesar de muitas vezes ignorado por seus entusiastas.

A fé no utopismo do capitalismo verde professada por parte do movimento de ecovilas pode ser justificada quando se esquadrinham as origens da fundação dinamarquesa Gaia Trust – uma das maiores impulsionadoras da criação da Rede Global de Ecovilas (GEN) e, sem dúvida, sua principal mantenedora. Dita fundação nasceu como o braço filantrópico da companhia especializada no gerenciamento de linhas de fundos mútuos Gaia Corp, fundada em 1988 pelo empreendedor canadense-dinamarquês Ross Jackson. No ano 2000, após uma história empresarial de relativo sucesso, a Gaia Corp foi vendida ao grupo sul-africano Appeton, no entanto, a Gaia Trust, com Ross e Hildur Jackson à frente, continuou existindo, agora atrelada à Gaia Tech, empresa de venture capital responsável por investir recursos em pequenas e médias companhias “verdes” dinamarquesas, financiando seu desenvolvimento e contribuindo para levá-las a novos patamares mercadológicos.

O amálgama ambientalismo-capitalismo é assim apresentado na página web da fundação:
A estratégia da Gaia Trust sempre foi baseada numa dupla abordagem Yin e Yang. O componente Yin é o suporte ao movimento de ecovilas, através do seu subsídio, enquanto o componente Yang é o investimento de capital em recém-criadas companhias “verdes”, que complementam a política de subsídios, criando empregos e promovendo mais negócios sustentáveis. O principal projeto resultante foi o estabelecimento da Rede Global de Ecovilas e o da empresa de capital de risco Gaia Technologies S/A. Mais de 300 projetos em 30 países foram subsidiados. Um dos conceitos chave é o de suportar os primeiros cursos de permacultura em diversos países.

Sinais dos tempos: Gaia, a Mãe Terra dos gregos, tem seu significado alterado pelas mãos do Deus Capital e os mecanismos financeiros passam a ser utilizados em nome da transição rumo a uma nova sociedade mais “espiritualizada” e “ecológica”. Dessa maneira, sustentabilidade e capitalismo são explicados cósmica e naturalmente como forças antagônicas, mas complementares e interdependentes, que se integram em um todo orgânico indissolúvel. Ideologicamente, isto é da maior  relevância, visto que colabora para reforçar a ideia de que não existe alternativa para edificar uma sociedade “sustentável” sem passar pelo filtro do mercado capitalista. Sobre esta questão, David Harvey (2008) explica que muitas das mobilizações e movimentos contestatórios contraculturais surgidos a partir dos anos 1960/70 foram incorporados pelo capital e passaram a colaborar para legitimar popularmente, no nível da experiência cotidiana, a virada neoliberal. 'O efeito disso em
muitas partes do mundo foi vê-lo cada vez mais como uma maneira necessária e até completamente natural de ‘regular’ a ordem social'

 
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