Nova translação da Terra e velhas tristezas...
Seu Tino é um senhor de 70 e muitos anos, negro, trabalhador e que sempre
foi muito forte. Nos últimos anos claro a saúde está meio debilitada, a coluna
já não ajuda e por aí vai.
Muito gentil e honesto, faz parte daquela leva de brasileiros
marginalizados, sem educação formal e muito menos especialização alguma.
Perambula por aí atrás de serviços variados como capinar um terreno, limpar
um jardim, cavar uma piscina... sim, o velho abriu uma piscina sozinho na
pá!
Como todo explorado, principalmente sendo negro, sua postura é sempre
humilde e resignada.
Às vezes o contratamos para algum serviço aqui em casa, assim como minha
irmã o faz na casa dela. Sempre frisamos que ele deve ter o tempo dele sem
prejudicar sua saúde e sempre permitimos que ele use o banheiro e tome água
fresca filtrada, assim como à tarde o servimos algum lanche.
Todos os nossos prestadores de serviço são tratados com respeito e
dignidade, sejam eles jardineiros ou advogados. Aliás, a hora da vida humana de
ambos tem o mesmo valor.
Estranho alguns diriam.
Paternalista diriam outros.
Tratar com respeito e humanidade alguém passou a ser sinônimo de “favor”, e
conseguir o ”melhor negócio” ainda que às custas de um pobre coitado virou
“natural”.
Ele capina quase um terreno inteiro de um lote padrão de 300 m2 e pede 20
Reais... tem gente que aceita ou pior, pechincha!
Nenhum ser humano com um pingo de moralidade deveria aceitar pagar tão
pouco para alguém trabalhar tão duro.
Alguns disparam o chavão neoliberal do “mercado” e da “oferta e procura”... com certeza Adam Smith (o papa dos liberais e neoliberais, que antes de mais nada era professor de moral – vide seu livro
“Princípios da moralidade humana” que, segundo ele mesmo, nunca deveria estar
separado do famoso “A riqueza das nações”) iria achar minimamente descente
isso.
Pagamos 100 Reais ou mais para esse um ou um dia e meio de trabalho duro.
Ninguém aqui é rico, muito pelo contrário. Nossa vida é bem simples por
opção.
A moral, simplificando, é o constate questionamento de
“o que eu NÃO DEVO fazer ainda que me seja permitido”
e “o que eu DEVO fazer ainda que eu não ganhe nada em troca e nem me
seja solicitado”
.
.
A essas questões, que devem
permear constantemente a mente humana, soma-se a sua conduta para com o
outro como indivíduo e como coletividade.
Daí logo se vê que “a lei” é apenas uma técnica. Uma ferramenta quando toda
educação falhou. A última e falha cartada de uma sociedade decrépita.
A técnica quando substitui a moralidade solapa todo o humanitarismo de uma
civilização e torna nebulosa – propositalmente - a diferença entre,
parafraseando Amartya Sen, a liberdade formal e a liberdade substantiva. Pois a
primeira depende da técnica – lei – e obviamente estará sempre a favor dos que
podem pagar e a segunda depende da moral humana. Não é apenas uma coincidência
que o neoliberalismo fomentou a extinção da moral, pois o que sobrou está sempre
a favor de uma minoria que agora nem se freia diante de uma conduta imoral ainda
que legal.
Mas voltando ao seu Tino, muita gente o explora na vizinhança.
É um misto mixo de poder e oportunismo, de uma ganância pífia, de uma
naturalização do ganhar a qualquer custo.
É o discurso e o modus vivendi naturalizado dessa sociedade, que
também defende as chacinas, a criminalização no uso de psicotrópicos ilegais, a
criminalização do aborto, a culpabilidade feminina no estupro, das diferenças de
gênero e raça e demais insanidades e truculências.
Uma vez perguntaram ao Roger Waters (ex vocalista, baixista e e genial
compositor do Pink Floyd) se ele era “infeliz”. Ele achou a pergunta patética e
disse que sua vida era ótima e sua família fantástica, mas que isso não o
tornava impermeável à desgraça humana e nem o impedia de se colocar no lugar do
outro.
Ter momentos de alegria devem permitir momentos de tristeza e reflexão, por
isso não acredito em alguém que seja feliz. Nós podemos ESTAR felizes, pois a
emoção humana não é uma condição de SER e sim de ESTAR.
E não posso considerar humano alguém que não se incomode com uma situação
tão comum dos Tino's do mundo. Evidentemente esse ‘incomodar’ deve ser profundo e
não palavras vazias ao vento. É a sua reflexão e a postura de vida diante
disso.
Por isso que o mínimo que considero descente é o consumo mínimo, assim como
o ganho mínimo. Claro, 'mínimo' é algo subjetivo, mas qualquer um que se questiona não sairá muito de uma espécie de "média comum da decência", pois o consumo estimula a exploração, tanto a humana quanto a dos recursos naturais, sua ligação com esse ideal mesquinho é óbvio.
E sim, qualquer um que ostente luxo num mundo tão desigual é um canalha,
legalista ou não.
Basta saber que as valorações de um ou de outro são completamente
arbitrárias e nada tem a ver com merecimento, muito pelo contrário, os acúmulos
são sempre às custas direta ou indiretamente de uma grande massa de
Tino’s.
Pensar nessa composição social e não ficar deprimido ou é esquizofrenia ou
a mais pura burrice canalha.
O recém falecido (uma perda enorme para uma época tão carente de cérebros
funcionais) filósofo Zygmunt Bauman uma vez respondeu a um jornalista quando
questionado sobre o tema, que era um pessimista no curto prazo e um otimista no
longo prazo. Claro, é uma maneira eufemística de responder a uma pergunta tão
tola, pois o curto prazo é a nossa existência e o longo prazo... bem, não é
nada.
E a “Trumpinização” do mundo corre solta... em 2018 com certeza algum
neoliberal fundamentalista do estado mínimo estará em nosso executivo
federal.
Enquanto isso resta-nos auxiliar um ou outro Tino do mundo e não fomentar
essa canalhice generalizada.
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