terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Rita, eu e um blog condenado - relato pessoal da TDAH por um TDAH

Não, isso não é um post romântico.

Falo tanto de DDA (hoje TDAH) e nunca postei nada sobre o assunto, em especial, minha convivência com ele.

Apesar de ser um relato pessoal, é bastante interessante para qualquer um que deseje transpor certos paradigmas através do devaneio e do livre pensar. No fim, fecho com Contardo Calligaris.

"Sigam-me os bons!" (do 'filósofo' Chapolin Colorado)

Inicialmente devo esclarecer que não mais conceituo o DDA como "transtorno", e muitos terapêutas mais modernos também não. Aliás, alguns nem sequer gostam de categorizá-lo, o que por si só, a mania de classificação, já é uma doença em nossa sociedade.

O DDA é muito discutido e avaliado em crianças mas, ao contrário das estatísticas (que são absolutamente ilógicas), todas as crianças com DDA viram adultos com DDA, já que em nossos cérebros, uma área do cortex frontal 'filtra menos' os estímulos do que deveria (?) e isso não é "curado" ou "concertado", mesmo porque, isso só virou um transtorno em nossa sociedade da eficiência e produtividade.

A internet está cheia de descrições do dito "transtorno" e um livro em especial, "Mentes Inquietas", é bastante elucidativo no assunto, então relatarei apenas minha experiência pessoal.
O DDA existe desde sempre em alguém, e comigo não foi diferente.

Comecei a falar e andar com 10 meses. Sempre tive dificuldade em dormir e até hoje essa "perda de tempo" me angustia. Tenho a impressão que sempre estou perdendo tempo, apesar de ser um incansável defensor da "sociedade para o tempo livre". Concordo, bastante estranho.

Conhecia todos os pronto-socorros e médicos de urgências. Tenho todo o tipo de cicatriz possível e imaginável.
Mais do que brincar, gostava de criar meus brinquedos. Tudo o que passava na minha mão ou qualquer coisa que me interessasse deveria ter seu "funcionamento" minunciosamente estudado. Claro que minha santa maezinha teve que suportar toda a sorte de coisas completamente desmontadas.

Com 3 ou 4 anos já "explicava" para os meus amiguinhos sobre a temperatura do chuveiro ou sobre o funcionamento das máquinas dos dentistas. Tudo por observação e intuição, claro que ainda distante da mecânica Newtoniana e da termodinâmica.

Observando agora, já com 4 décadas de existência, vejo que sempre fui cético e sempre quis saber exatamente como as "coisas funcionam".
Meu primeiro computador (um NE-Z8000 como citei no meu post anterior - lá pela metade da década de 80) foi montado e "embalado" numa linda calculadora antiga.

A escola era um paradoxo de interesse e desespero de fugir, na faculdade não foi diferente. Acabei por desistir. Claro que não sem uma dose imensa de culpa que me corrói até hoje.
Nunca estudei. Nunca mesmo. Sempre estudei em escolas de bom nível e nunca fui reprovado.

A hiperatividade sempre foi meu símbolo.
Praticava toda a sorte de esportes. Joguei bola na rua compulsivamente, fazia educação física  com prazer, e ao contrário dos outros moleques, ainda me matriculava em cursos de basquete e volei. Pratiquei 100 metros, 110 com barreira, revezamento 4X100 e salto em altura.
Ganhei medalhas mas nunca quis me especializar (há! isso é muuuuuuuito difícil pra um DDA!) em nada.
Adulto, achava que queria flertar com a morte (ainda acho): mergulhador avançado, já fiz paraquedismo, paraglider, cannyoning, rafting, trilhas mil e recentemente motocross.

O medo do fracasso e da desistência são uma constante (e aí a auto-estima vai pra casa do caralho - ok, me desculpem o linguajar chulo e nada acadêmico),  e aliado à hiperatividade e a curiosidade generalizada desencadearam numa impossibilidade do que atualmente chamam de especiaização, a formal e burocrática bem entendido.

De qualquer modo, nunca acreditei em especialização. Acho uma espécie de coroamento da mediocridade, tão valorizada atualmente, principalmente no ambiente coorporativo.

Escrevi meu primeiro livro com 19 anos, sem pretensão nenhuma, sem gente influente apoiando, sem press release e sem nada, ainda foi bem elogiado pela crítica especializada.
Escrevi outros já sem a mesma vontade. Claro, não era mais desafiador.
Encontrei futuros engenheiros da Poli que me cumprimentavam emocionados, sem saber que eu era um nada que os formava, algo bastante paradoxal já que numa coorporação eu possivelmente sequer seria aceito.

Comecei a trabalhar com hardware e acabei no software.
Iniciei a graduação em Física e lia livros de Psicologia nos intervalos.
E de qualquer modo, o CPEUSP era minha segunda casa.

Especialização? Término de tarefas? Prazos? Organização?
Esquece, isso não funciona com a gente, ou pelo menos, é muito difícil.

Numa sociedade que prima pela concentração focada e produtividade (o que é incompatível em alguém com DDA), se você não for um artista está frito.
Depressão é uma comorbidade comum em DDA's.

Ter déficit de atenção não é não se concentrar em nada, mas sim se concentrar em tudo e adicionalmente ter um superpoder adicional: o hiperfoco.
O hiperfoco é algo que aprendemos instintivamente ao longo da vida e faz com que, em algo que nos atraia, simplesmente depositemos toda a energia no objeto em questão, uma espécie de altismo seletivo.
Esse caos de estímulos sempre me fez adorar o silêncio e abominar as aglomerações humanas. 
Os DDA's são aqueles chatos que sempre querem ir embora cedo de uma festa num boteco. Não que todos os chatos sejam DDA's mas todos os DDA's não se dão muito bem em locais caóticos (os "normais" ainda por cima se violentam para serem "in").

Tentei a Ritalina por um tempo, devidamente prescrita por um médico.
Sem chance. Ganho pífio. Em adultos, o comportamento pesa mais do que a química.

Trilhei a minha vida para viver como sou. 
Admito que já quis me enquadrar no mundo coorporativo e das pessoas "normais" e sempre acabei saindo.
Meu tempo livre e minhas longas jornadas de divagações agradecem. 

Com esse confuso relato (típico) é possível entender melhor o que está na descrição desse blog, ou seja, ele é parte da minha TCC (terapia cognitiva comportamental). 

Cada término de um texto é uma vitória e mantê-lo por um ano foi meu objetivo.

Agora me permito novamente a liberdade de abandonar mais uma coisa sem mais nem menos. Esse blog nasceu morto.

Deixo um trecho do Contardo Calligaris sobre a "ritinha" (metilfenidato) e a importância do foco.

"Nos anos 60, o metilfenidato (um estimulante) começou a ser usado para tratar o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) em crianças em idade escolar. De 60 a 90, o diagnóstico de TDAH aumentou brutalmente: nos EUA, por exemplo, de 12 crianças em cada mil nos anos 70, chegou-se a 34 em cada mil nos anos 90.

Seja qual for a realidade neurológica e psicológica do TDAH e seja qual for a eficácia do seu tratamento com metilfenidato, é difícil não constatar que a epidemia tem também uma explicação cultural.


Sua história começa logo nos anos 60, uma época em que divagar (perder-se no pensamento e pelo mundo) era um valor positivo da contracultura. Desde então, voltamos a prezar o olhar focado do predador. O ápice dessa reação (e do diagnóstico de TDAH) foi a religião do sucesso dos anos 90.


Ora, começam a aparecer pesquisas que revalorizam a divagação e o devaneio. "Descobrimos" o que já sabíamos: há uma desatenção sem a qual não se consegue pensar nada que valha a pena.


Usando apenas o dito "controle executivo" focado, conseguiremos cumprir tarefas adequadamente (mesmo assim, à condição que não haja imprevistos), mas não inventaremos nada. A própria invenção científica (não só a criação artística) pede um uso simultâneo de controle executivo e divagação.

Duas pesquisas, para quem quiser ler (com atenção, claro): www.migre.me/1aZZu e www.migre.me/1b57h.

A segunda documenta (por ressonância magnética funcional) a cooperação possível de pensamento focado e devaneio (que ainda são, por muitos, considerados como atividades exclusivas uma da outra).

À luz dessas pesquisas, seria bom reavaliar nossa hipervalorização da atenção focada e, sobretudo, nossa medicalização sistemática de crianças que, às vezes, com toda razão, gostam de sonhar de olhos abertos."

6 comentários:

  1. Valeu sensei! Muito bom!É, mais uma vez eu me enxerguei em algumas das passagens de seu texto, porém...há versões de comportamento dos TDAH certo? Tipo, esporte? Física?Comigo? Não senhor, quer dizer...Me diga: há nos TDAH uma tendência à aprender as coisas de uma determinada maneira? Pois se tem uma coisa que me ferrou e continua me ferrando, é que não gosto de aprender nada de forma absolutamente linear. Odeio a obrigação de percorrer de A até Z, quando existem N, B ou F, não necessariamente nessa ordem, pra apreciarmos. Não me formei em faculdade nenhuma por isso, e por uma mistura bombástica de outras coisas, entre elas o meu terror a autoridades, sejam elas quais forem, mesmo que seja pro meu benefício.Enfim, é melhor parar por aqui porque vou acabar escrevendo um post, então, é melhor deixar pro meu blog.Antes de terminar: eu te chamo de sensei pelo seguinte motivo: por puro acaso li um texto seu, que foi o do "Preciso de um Pajé", não sei exatemente como ou porque cheguei lá, mas acabei lendo. Me diverti muito, e acabei lendo outras coisas, e daí achei divertido tentar escrever meu próprio blog. Por sua maneira de pensar, pelas coisas que conseguiu na vida sendo do jeitinho que vc é, te reconheci como uma pessoas inpiradora, por isso você é um sensei pra mim, alguém que dá uma visão de mundo diferente, enriquecendo. Provavelmente outras pessoas te enxergam da mesma maneira, apenas não usam a numeclatura( talvez um tanto inadequada ou exagerada, talvez ligeiramente estuprada da versão original, mas ainda sincera). Enfim...vou culpar a TDHA por vc meio que não perceber o ser bonito que você esculpiu em si próprio, de maneira a ter esses "surtos" depressivos.É, deve ser condição do "transtorno", eu sou assim, pelo menos.
    PS:vc provavelmente está condenando a inexistência uma ou várias crianças, que teriam um maravilhoso pai. Ah, que se dane.

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  2. A vida é inspiradora quando todas as pessoas se inspiram umas nas outras, e de conteúdos variados, surgm novos conteúdos, uma "teia da vida" como diria Fritjof Capra.

    Claro que num mundo medíocre a maioria das teias são bem podres. rs

    Cada um acha seus caminhos e seus interesses nesse mundo estranho do TDAH, mas com certeza pra nós não existe atalho. É bom para o enriquecimento de espírito, mas difícil numa sociedade para o trabalho, lucro e eficiência.

    Existem TDAH's com graus diferentes de hiperatividade e deficit de atenção.

    Mas somos todos cheios de fragilidades, portanto, às vezes necessitamos de ajuda profissional.

    História de um TDAH conhecido:
    Um dia Albert Einstein estava saindo de um prédio de uma universidade e perguntou a um aluno: "Eu vim de lá ou de lá?"
    O aluno achou meio esquisito mas disse: "O senhor veio da lá."
    Mestre Einstein então concluiu tranquilo: "Pra lá é o lado de restaurante, então eu já almocei."

    PS: sobre filhos? Assunto complicado.
    Um grande amigo me disse que as pessoas só pensam em que mundo darão aos filhos, mas esquecem de pensar em que filhos darão ao mundo.
    Acho que não teremos um mundo muito bom no futuro e também acho que não daria filhos muito bons ao mundo. De qualquer modo, não gosto de gritaria, choro, merda e vômito (rs), e não cabe em minha vida a responsabilidade de criar um novo cidadão.

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  3. Discordo do seu amigo quando diz que a pergunta mais importante a se fazer é a de que tipo de filhos nós daremos ao mundo.Penso mais que a pergunta mais adequada seria " O que o mundo vai fazer de nossos filhos?". Que teoria o sensei acha mais realista: a de que Hitler era mal por natureza e seguiu simplismente o caminho de sua índole, ou a realidade e pessoas que o cercaram foi que formaram uma combinação bombástica? Ah é, tem uma terceira opção: o que seu amigo espírita falaria de uma figurinha como Hitler, qual o lance da vida passada desse cidadão teria tornado-o o que ele se tornou? Aliás, o que o sensei terá vivido na vida passada pra não desejar ter filhos nessa encarnação? Hmm?

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  4. Cara, na boa, vai acabar o blog mesmo??? agora que acabaou a obrigação é que começa a melhor parte... poder fazer o que quiser e postar aqui as experiências quando e se quiser...

    Abraços

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  5. Do Contra, essa é uma boa pergunta complementar.
    Hitler?! Já estamos viajando! rsrs
    Acho que o ser humano é um conjunto de genética (hardware e BIOS. hehe) e criação (cultura - nosso software) em infinitas proporções distintas. Pareço reducionista assim, mas é apenas uma analogia.
    Sinceramente eu nem sequer dou atenção ao que um espírita diz, a não ser como tema pra algo humorístico.
    O que fui em minha vida passada?! Boa pergunta para um cético.
    Eu acho que fui um caracol, pois eu não gosto de sair de casa e eles carregam a casa nas costas. rs

    Marco, eu não disse que ele vai acabar, apenas disse que cumpri meu pequeno objetivo e agora tudo o que vier é lucro. rs

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  6. Aqui fala uma TDAH-sem-o-H, o que significa dizer que não rola nada de esportes nem siricotico de "bicho carpinteiro" ou "bicho no corpo inteiro". O que significa dizer que é um pouco mais claustrofóbica a situação, porque tudo é acelerado, incessante e fragmentado somente dentro da cabeça. Rola, isso sim, uma certa paralisia disfarçada de preguiça. Até pra escrever. Agora, sob o chicote do prazo e do compromisso com uma editora, estão saindo o que serão talvez meus três únicos livros publicados - e nem foi exatamente uma obra criada por mim, no sentido literário. Em resumo: sinto que o hiperfoco foi de grande ajuda durante toda a minha vida, mas um certo aprendizado em relação à disciplina teriam sido mais efetivos. Ando repensando: hoje creio que uma certa disciplina é passaporte para a liberdade, por mais paradoxal que pareça. Infelizmente, não a tenho. Talvez seja algo a conquistar.

    Seu Coisa, faça como eu: um dia, dois posts de uma vez. Depois, dois meses sem uma linha. A gente agradece...

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